sábado, 3 de junho de 2017

Ser louca é bom

Há muitos anos estou nessa! Nessa de saber que sou preta e que minha pele é marca de uma história milenar, e que alimenta um compromisso com os irmãos e irmãs a compartilharem comigo a experiência da diáspora. O compromisso marcado na pele abre poros, que vão muito além de bandeiras, embora as bandeiras sejam enormemente importantes para o fortalecimento das identidades  forjadas nas lutas de mulheres e homens negros.

Assim, o caminho que meus pés fazem é marcado por essa consciência nascida da firmeza de um compromisso coletivo e amadurece numa atuação, que não dita padrões, e é delineada por fronteiras, que não são estanques ao se fazerem na medida em que os passos avançam, ou quando é preciso que retrocedam. Avançar e retroceder é a melodia de lutar.

E assim vou vivendo!

Ser mulher preta desenha grande parte de minha vida. Por ser muito do que sou, não escolho momentos para ser mais ou menos preta. Minha pele não tem intervalos. E se o racismo pesa, a vivência de ser negra fortalece! E com ela vou por todos os cantos. Afirmando a estética como política, a política como trilha, e as trilhas como mapas vivos e pulsantes das possibilidades de (re) existência e libertação.

Nessa vida vou (re) escolhendo ser eu nas medidas que eu própria estabeleço, no saborear de meus traços pelo mundo,  no diálogo com cada pessoa que caminha comigo... E não tenho medo!

Assumo. Permaneço. Sigo.

Não me calo. Não me curvo. Não fujo à luta.

E no campo profissional é assim. Eu sendo a Giane Elisa! Preta, mulher, trabalhadora, e construindo minhas competências no diálogo constante e ininterrupto com meus pertencimentos. Tão vários. Tão diversos. Tão cheios de mim. Escolhas nem sempre simples. Escolhas que, por diversas vezes, me deixaram de fora de oportunidades a despeito do conhecimento, da técnica, da presteza diante dos desafios de ser professora, de coordenar projetos, de liderar programas. Conhecimentos que não pertencem apenas a mim, mas também a todas as outras que antes de mim travaram os mesmos enfrentamentos. A história mudou pouco.

E, nesse tempo, fui por aí experimentando reconhecimentos e silenciamentos. Silenciamentos surgidos sempre na tentativa de tirar de mim aquilo que me constitui em todos os momentos. Na minha casa... No meu trabalho... Na minha vida. Minha voz firme diante do enfrentamento ao racismo, ao machismo e à qualquer forma de opressão que tente se aninhar ao alcance de meus olhos, tocaram em alguns outros no desejo de silenciar-me.

Nos últimos anos, venho experimentando, com mais frequência, a vivência do desmerecimento profissional. Talvez pela maturidade, talvez pela ascensão profissional, talvez porque a cara feia do machismo e do racismo use novas e mais potentes máscaras para embelezar-se diante da crueldade de sua face.

A defesa de quem sou, do meu povo e da liberdade que busco e carrego têm me mostrado, com frequência, o despertar do descaso, do desmerecimento, do assédio e a tentativa de desenharem-me como a louca, a desmedida, a radical...

Tolos!

Não conseguiram ter sensibilidade suficiente para saber que diante da violência e da violação não há outro caminho senão o de ir a fundo na raiz daquilo que constrói a opressão. Ser radical é ir na raiz. E esse é o único caminho diante da radicalidade dos esquemas que nos colocam de fora, que nos violentam e que nos matam.

Nos matam. Nos matam. Nos matam...

Não diferente, tentam matar-me com essas armas... A de desenhar-me como uma mulher de menos valor, pouco confiável, sem mesuras e de difícil trato... A covardia do racismo e do machismo ensina a esses tolos, a se esconderem diante daquilo que, de fato, vão inventando na outra, no outro. Atributos para os tirarem da cena. Invencionices que nos façam deixar de ser ameaça... O medo branco.

Não é novidade para NENHUMA mulher negra.

Vou assim. Esse enfrentamento que tira de nós o conhecimento construído, o poder de fala, a possibilidade de intervenção... Mas vou. Continuo indo. Todas nós vamos...

Me engolem. Me ouvem. Mas não respeitam.

Se contorcem diante de meu conhecimento, de minha técnica, de meus saberes. Toleram minha pele preta e minha consciência negra, porque não suportam a força de todas aquelas que carrego junto de mim.

Experiência diária. As vezes fortalece. As vezes adoece. Sempre redesenha os caminhos e incendeia de força e coragem as escolhas que faço até aqui.

Permanente racismo... Nas veias dos grupos, das instituições, da sociedade toda. Toda ela.

E vamos aqui, e em todo canto. Enlouquecendo diante do que ainda insistem em nos roubar. Escolhendo a radicalidade para sobreviver... Eu cá, buscando a palavra para renascer. Todos os dias. O dia todo.

Com minha voz em canto.

Meu corpo.

Minha presença.

Minha luta. Incessante.


Minha dança louca.

Forte. Deliciosamente louca!

Diante do racismo ser louca é bom!!!!