Há muitos anos estou nessa!
Nessa de saber que sou preta e que minha pele é marca de uma história milenar,
e que alimenta um compromisso com os irmãos e irmãs a compartilharem comigo a
experiência da diáspora. O compromisso marcado na pele abre poros, que vão muito
além de bandeiras, embora as bandeiras sejam enormemente importantes para o
fortalecimento das identidades forjadas
nas lutas de mulheres e homens negros.
Assim, o caminho que meus
pés fazem é marcado por essa consciência nascida da firmeza de um compromisso
coletivo e amadurece numa atuação, que não dita padrões, e é delineada por
fronteiras, que não são estanques ao se fazerem na medida em que os passos
avançam, ou quando é preciso que retrocedam. Avançar e retroceder é a melodia
de lutar.
E assim vou vivendo!
Ser mulher preta desenha
grande parte de minha vida. Por ser muito do que sou, não escolho momentos para
ser mais ou menos preta. Minha pele não tem intervalos. E se o racismo pesa, a
vivência de ser negra fortalece! E com ela vou por todos os cantos. Afirmando a
estética como política, a política como trilha, e as trilhas como mapas vivos e
pulsantes das possibilidades de (re) existência e libertação.
Nessa vida vou (re)
escolhendo ser eu nas medidas que eu própria estabeleço, no saborear de meus
traços pelo mundo, no diálogo com cada
pessoa que caminha comigo... E não tenho medo!
Assumo. Permaneço. Sigo.
Não me calo. Não me curvo.
Não fujo à luta.
E no campo profissional é
assim. Eu sendo a Giane Elisa! Preta, mulher, trabalhadora, e construindo
minhas competências no diálogo constante e ininterrupto com meus
pertencimentos. Tão vários. Tão diversos. Tão cheios de mim. Escolhas nem
sempre simples. Escolhas que, por diversas vezes, me deixaram de fora de
oportunidades a despeito do conhecimento, da técnica, da presteza diante dos
desafios de ser professora, de coordenar projetos, de liderar programas. Conhecimentos
que não pertencem apenas a mim, mas também a todas as outras que antes de mim
travaram os mesmos enfrentamentos. A história mudou pouco.
E, nesse tempo, fui por aí
experimentando reconhecimentos e silenciamentos. Silenciamentos surgidos sempre
na tentativa de tirar de mim aquilo que me constitui em todos os momentos. Na
minha casa... No meu trabalho... Na minha vida. Minha voz firme diante do
enfrentamento ao racismo, ao machismo e à qualquer forma de opressão que tente
se aninhar ao alcance de meus olhos, tocaram em alguns outros no desejo de
silenciar-me.
Nos últimos anos, venho
experimentando, com mais frequência, a vivência do desmerecimento profissional.
Talvez pela maturidade, talvez pela ascensão profissional, talvez porque a cara
feia do machismo e do racismo use novas e mais potentes máscaras para
embelezar-se diante da crueldade de sua face.
A defesa de quem sou, do meu
povo e da liberdade que busco e carrego têm me mostrado, com frequência, o despertar do descaso, do desmerecimento, do assédio e a tentativa de desenharem-me como a
louca, a desmedida, a radical...
Tolos!
Não conseguiram ter
sensibilidade suficiente para saber que diante da violência e da violação não
há outro caminho senão o de ir a fundo na raiz daquilo que constrói a opressão.
Ser radical é ir na raiz. E esse é o único caminho diante da radicalidade dos
esquemas que nos colocam de fora, que nos violentam e que nos matam.
Nos matam. Nos matam. Nos matam...
Não diferente, tentam
matar-me com essas armas... A de desenhar-me como uma mulher de menos valor,
pouco confiável, sem mesuras e de difícil trato... A covardia do racismo e do
machismo ensina a esses tolos, a se esconderem diante daquilo que, de fato, vão
inventando na outra, no outro. Atributos para os tirarem da cena. Invencionices
que nos façam deixar de ser ameaça... O medo branco.
Não é novidade para NENHUMA
mulher negra.
Vou assim. Esse
enfrentamento que tira de nós o conhecimento construído, o poder de fala, a
possibilidade de intervenção... Mas vou. Continuo indo. Todas nós vamos...
Me engolem. Me ouvem. Mas
não respeitam.
Se contorcem diante de meu
conhecimento, de minha técnica, de meus saberes. Toleram minha pele preta e
minha consciência negra, porque não suportam a força de todas aquelas que
carrego junto de mim.
Experiência diária. As vezes
fortalece. As vezes adoece. Sempre redesenha os caminhos e incendeia de força e coragem as escolhas
que faço até aqui.
Permanente racismo... Nas
veias dos grupos, das instituições, da sociedade toda. Toda ela.
E vamos aqui, e em todo
canto. Enlouquecendo diante do que ainda insistem em nos roubar. Escolhendo a
radicalidade para sobreviver... Eu cá, buscando a palavra para renascer. Todos
os dias. O dia todo.
Com minha voz em canto.
Meu corpo.
Minha presença.
Minha luta. Incessante.
Minha dança louca.
Forte. Deliciosamente louca!
Diante do racismo ser louca
é bom!!!!