Ele decidiu morar ali. No
Calçadão da Halfeld. No centro nervoso de Juiz de Fora.
Se
instalou aos poucos. Uma mala, panelas, um colar elisabetano, alguns cobertores, caixotes de madeira, três cachorros. E Ele.
Os
dias amanhecem e cada dia a fronteira daquela casa vai aumentando... Ali, no
meio do ir e vir, de frente para uma instituição financeira, entre um cinema
antigo e uma loja de sapatos.
Não
atrapalha ninguém. Essa é a verdade. Não tem ir e vir. Tem o permanecer, que
alimenta os olhares gulosos, de quem quer a vista “limpa”, a cidade guardada do
que a faz real... O conflito, o caos que se ajeita no direito de cada um fazer
da cidade aquilo que lhe convém em ser cidadão...
É no
meio disso que Ele se instalou com os quinquilhumes, os cachorros, e a certeza de que é ali que ele
quer ficar. A casa que Ele faz existir tem o piso de pedra portuguesa, e ela
não aquece os dias e noites em que Ele e os três cachorros permanecem por ali,
assistindo ao burburinho da cidade, e sendo parte significativa dele... Para os
cães há olhares de acolhida, saquinhos de ração, banho e tosa vez ou outra... A
Ele, as vozes do incômodo, da higienização, da intolerância, travestidas por
trás dessa tal organização do espaço urbano... Essa crença besta de que a
urbanidade se organiza pelas regras que os homens (a maioria são homens mesmo) e mulheres
criaram. Gente besta essa que acha que o papel é maior que o desejo...
A cidade
é gente! Gente que caminha, gente que transita, gente que movimenta. Gente! E, aquele
olho guloso da exclusão, vai ensinando, que tem gente que não é tão gente
assim... Então, pode sim, ser tirada das vistas, ser posta de lado, ter as
coisas amontoadas... Talvez queimadas e postas no lixo.
É uma
afronta! Não bastasse permanecer ali, ainda tem a ousadia de não aceitar o que
dizem ser melhor para Ele. Nem o Estado. Nem o Mercado. Nem todas as pessoas
que fazem estado e mercado existirem. Ele está ali. Ali permanece e ainda tem a
petulância de criar cachorros... Ali
permanece e carrega o desaforo de fazer da rua um território de direito!
A rua!
O lugar! Os cheiros, os sentidos, os encontros. “Tudo na vida é encontro”. E os
olhos gulosos alimentados de ignorância, racismo e preconceito fazem o corpo
acreditar que o giro dos encontros não é tão necessário para a vida da
cidade... Gente besta essa que acha que os espaços têm limites que quem define
é o papel e a caneta...
Ele
fica. Há quem diga que maltrata os cachorros... Há quem diga que precisa de
cuidados. Ah, o cuidado! Esse revolucionário ato de amor... Diante da casa que
Ele criou no Calçadão da Halfeld, o discurssozinho do “ele merece cuidados” se
encerra nos limites do tirar da vista, do estabelecer o que deve para Ele ser a
prioridade. Não sei se sabem seu nome, ou o nome dos cachorros. Não sei se conhecem a história que Ele
carrega... E história é coisa que todo mundo tem!
Há
quem diga que Ele é louco. E o que é a
loucura? Qual necessidade é essa de circunscrever a experiência sensorial dentro
de determinados limites que não se sabe ao certo de onde surgiram... Embora
saibamos direitinho o motivo porque surgem... A invenção do que é normal. Do
que é bom. Do que é certo. Do que deve ser o outro...
O
louco. O proscrito. O bagunceiro. O desordeiro. O folgado. O insubordinado.
Ele. Ele e os cachorros. Ele e as tralheiras. Ele. Ele e a sua decisão. Ali. No
meio do Calçadão da Halfeld. Na mesma Halfeld, que até a década de 70 do século
passado, dividia -se entre territórios de negros e territórios de brancos...
Negros não circulavam até a fronteira da Rua Batista. Dali pra BAIXO, sim, era
o lugar permitido... Que gente besta essa que não calibra o olhar para perceber
o texto que Ele escreve sobre essa cidade, quando se instala num território
demarcado pelo limite da fruição determinado pela cor da pele...
Uma
afronta! Um desaforo! Um abuso! Ele com aquela “casa imaginária”, ali, na vista
de todo mundo... Ele com aqueles cachorros... Ele com aquele corpo pobre, Ele
com aquele corpo preto... Ele... Ele... Ele... Ele... Ele e a loucura. Ele e o
racismo. Ele e a higienização. Ele e a pobreza. Ele e a rua. Ele e o direito.
Ele e o texto escrito em cena viva sobre essa cidade engraçada e cheia de impedimentos,
violações, limites e fronteiras para olhar...
Ler o
que se esconde atrás das montanhas não é tarefa fácil... Feito a casa pelo meio
da rua... Os quinquilhumes, os cachorros, os olhares de uma raiva histórica, os
discursos bem ajeitados para construir a exclusão... Difícil feito Ele.
Ele...
Ele... Ele... Ele e aquilo que Ele decidiu ser. Apenas Ser. Vivo. Humano.
Gente!
É um
desaforo goela abaixo dessa gente besta que ainda não se experimentou na aventura de adentrar ao
desejo do outro...
A
casa... a mala... as panelas... o colar elisabetano... os cobertores...
caixotes de madeira... três cachorros...
Ele.
(imagem retirada de https://www.google.com.br/search?q=cachorrocentrica+morador+de+rua+e+cachorro&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwifjNTf5-vUAhWLl5AKHVe6CR4Q_AUICigB&biw=1366&bih=613#imgrc=AobyZpYqcp0VVM:)
Quanta sensibilidade, quanto respeito! Fico muito tocada por essa forma clara e precisa de trazer essa verdade do direito de pertencer! Você traduz o que agente deveria "ler" fácil.
ResponderExcluirEstou relendo e revivendo cada espaço da cidade.
ResponderExcluirCada palavra trás um sentimento... Olhar sem limites.
ResponderExcluirMuito bom ver que nem todos estão cegos diante as realidades da vida. Parabéns Giane!
ResponderExcluirEsse caso, real na vida da cidade, demonstra a invisibilidade frente a qualquer produção de diferenças. E assim vamos nos produzindo e reproduzindo nessa sociedade que anestesia a todos, banalizando, invisibilidade e criminalizando as diferenças.
ResponderExcluirOlhos corajosos e sensíveis que se permitem ver. Palavras que conseguem traduzir tão bem o que muitas vezes sentimos de forma ainda confusa e embaçada. Admiração.
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