Lembro
bem do comercial que falava da marca de sabonete para todas as mulheres...
Nele, várias modelos dançavam em meio à tecidos esvoaçantes e o lema do anúncio
dizia que o tal sabonete era para todas as mulheres, porém, na tal dança não
existiam mulheres negras...
Dessa
vez a marca não só insistiu no tema da invisibilidade de corpos negros, como
também associou esses corpos negros à um processo de branqueamento ilustrado
pela associação da pele negra à sujeira.
O
recente comercial não chegou a circular no Brasil, mas ainda assim nos “cansa a
beleza. ” Isso cansa. Cansa esses corpos sem lugar e cansa o espírito de quem
caminha nessa diáspora sempre tendo que anunciar ao mundo sua humanidade.
Sim... Mulheres negras são gente! Mulheres negras sentem, pensam, consomem,
trocam, simbolizam... E, nessas simbologias, aquilo que é atribuído a esses
corpos sempre o são de modo a desmerece-los diante do padrão de humanidade
estabelecido pelo branco.
Espanta
à um grupo expressivo de pessoas que o tal comercial tenha sido aprovado....
Pensa-se nos envolvidos em todo o esquema de produção. Desde o fotógrafo até o
editor, passando pelas duas modelos, uma negra, outra branca...
Importante
dizer, que no caso em questão, a modelo negra disse não ter sido informada de
que a edição das imagens teria o resultado que teve... Mas, independente disso,
a verdade é que corpo negro se aprende no lugar do desmerecimento, aprende
tanto que já nem o percebe, pois que esse é o único lugar que conhece, mesmo
quando há a falsa sensação da mobilidade social... Move-se entre espaços sem
que os lugares se alterem, sem que as estruturas se afetem.
Sim!
O Racismo é superestrutura. Na medida em que envolve a cultura, o poder
político, a economia, os ritos sociais essa superestrutura tem como sustentação
a ideologia que compreende e determina que os diferentes corpos não devem
circular de igual maneira pela sociedade. Tal circulação deve então ser
demarcada por imaginários e símbolos que distribuam diferentes papéis e
diferentes possibilidades de fruição da vida cotidiana.
(Usu)fruir
a beleza presente na concepção de um comercial de cosmético não é o papel/lugar
destinado à corpos de mulheres negras... O protagonismo na beleza não foi
pensado para essas mulheres a não ser que essa beleza esteja associada a apelos
sexuais ou ao exotismo. Mulheres negras são vistas como negras, quase nunca
como mulheres.
E, voltando
lá na superestrura sustentada pela ideologia e relacionando-a ao tanto de
pessoas que estiveram diante da tal peça publicitária da marca de cosméticos, e
não se incomodaram, em nada, com o texto dito através daquela imagem, tem me
intrigado o modo como os brancos se eximem de sua responsabilidade diante de
situações como essa.
Ah...
O Branco... O frágil, o ofendido, o inocente branco... Nunca foi isso. Nunca é
bem assim. Nunca é aquilo de fato o que se quis dizer. Nunca é aquilo que está
acontecendo. Nunca é ele. Em situações como essa nunca são os indivíduos, e tão
pouco se reconhecem como coletividade. E, nesse cenário, é impossível vislumbrar
um enfrentamento coletivo ao racismo porque socialmente não existe coletividade
entre brancos e pretos. Os pretos são vítimas do racismo e só.
Não
há quem o sustente. Não há quem o opere. Não há quem o reproduza. Não há
rostos. Não há nomes. Não há identidades. Há apenas a vivência de uma opressão
que se engendra por sujeitos fantasmas que nunca estão conduzindo as realidades
de subjugação, exclusão, desmerecimento, adoecimento e morte.
Lidamos
com o racismo no Brasil como uma entidade que, concretamente, nem se sabe de
onde surge. Porque ninguém é racista. Todo mundo é bacana. Todo mundo tem uma
amiga preta. Todo mundo lida bem no meio dos pretos. Todo mundo gosta, aprecia
a cultura dos pretos. O racista feioso não tem cara e não é ninguém. Há a consciência
de sua existência. Mas, de fato, ninguém sabe quem ele é. Mais que isso, nenhum
Branco, de maneira individual, é ele.
Desconsidera-se
a ideologia que sustenta a superestrura na medida em que as ações individuais
não são consideradas como operadoras de um sistema de opressão. As ações
individuais de frequentar determinados espaços onde não há negros, de consumir
produtos ou lugares que incentivam o racismo, de não circular por espaços “de
preto”, de se associar afetivamente à indivíduos que têm práticas explicitas de
racismo, não são vistos como racismo.
Nunca
se questionar sobre a ausência de pretos nos espaços de poder já é praxe
brasileira. E, junto dela, há também o descompromisso de não se questionar
também sobre a ausência dos pretos nos espaços de poder de cada pessoa branca,
nos espaços de afeto que ela constrói no cotidiano.
Onde
estão, Branco, os pretos da sua vida? Quais são seus lugares de poder e de
afeto? Quais são as partilhas que vocês têm? Como ele atravessa seus
territórios brancos??? Qual sabonete você usa???
Interessa-me
contribuir para que a discussão do racismo saia da superficialidade em que se
encontra, quando consideramos a sociedade brasileira, para que tenhamos
possibilidade de enfrenta-lo. Não tenho a pretensão, e muito menos o desejo, de
ensinar a minha dor e a do meu povo. Não mesmo. Mas quer saber? Tô bem cansada
de, nesse caminho do enfrentamento ao racismo, olhar pro lado e só ver cara
preta, como se apenas nós fôssemos responsáveis por alterar esse estado de
despersonalização da existência em que estamos submetidos desde que essa
história começou.
Isso
cansa.