sexta-feira, 16 de março de 2018

Carta à minha irmã


Minha irmã,

Sim! Deixe que eu te chame de irmã... Sei que por aqui o colonialismo, a branquitude e o racismo nos ensinaram que irmãs são apenas aquelas que partilham o mesmo sangue... Como são limitados em se afetar... Não importa! Sei também, que na nossa tradição de África, as irmãs se constroem pelos afetos que se criam no dia a dia de sua comunidade. Mais que isso, sei que os laços que nos trazem nesse longo caminho de “passos que vêm de longe” nos fazem irmãs pelo pé fincado nessa diáspora tão dolorosa ainda... Dor e resistência nos unem. Então, te chamo irmã porque nos fazemos irmãs. Pela dor. Pelo caminho. Pela luta!

Mataram uma de nós. Tantas de nós.

Quis falar com você, minha irmã, logo que fiquei sabendo da morte de Marielle... Mas, confesso: Eu quis sumir. O susto, a  dor e a indignação acabaram me deixando sem palavras... Não sem voz! Nunca sem voz! A prática de nos silenciarem acabou por nos ensinar a força que tem nosso grito... Então, eu quis gritar... Quis gritar por Marielle, quis gritar por Cláudia, quis gritar por tantas de nós sendo mortas de morte matada e morte morrida... Sim irmã! Aprendi, que a morte morrida anunciada por nossas ancestrais é essa aí que nos matam sem que atirem em nós...

Nos matam pela falta de cuidado, nos matam pela privação direitos. Nos morrem pela invisilibilidade que dia a dia caminha conosco, irmã... Independente do lugar que ocupamos... Ali está ela nos escondendo do mundo.Pareada. Firme. Decidida. Querem nos apagar, irmã... Dia e noite. Noite e dia. Todo dia. O tempo todo. Saiba. Mais que ela, eu caminho com você. Eu vejo você. Somos mais que uma!

Mataram uma de nós. Tantas de nós.

Quis te escrever, minha irmã, porque sei que você está cansada... Sei que aí na sua garganta tem um grito preso que não se solta se você gritar... Sei que você está exausta... Sei que seu peito aperta como se alguém espremesse sua alma. E sei, minha irmã, que você sabe, que mesmo tendo tanto incômodo morando no corpo, você não pode desistir... Eu sei... Nem esse direito existe para nós... Ser mulher preta é ter pela vida à fora a imposição da luta... Você não luta apenas porque escolheu lutar, irmã. Você luta porque do contrário não lhe permitem viver...

Mataram uma de nós. Tantas de nós.

Vamos morrendo sem que percebam que ser mulher preta é mais motivo para ser morta... Nem gostam que a gente fale isso. Na verdade, não gostam de nossa voz e nem do que temos a dizer... Nos mataram. Dessa vez, irmã, foi numa emboscada... No corpo de Marielle atiraram em nós nove vezes... Miraram nossa cabeça, irmã, ali onde, na nossa tradição, está o centro da vida. O Ori... Tiraram Marielle de nós e tiraram, de novo, nós de nós mesmas... Nos tiram. Sem cessar. Nos roubam. Nos agridem. E nos querem caladas. A qualquer custo. Mesmo com o custo da vida... Nossa vida não lhes vale.

Não nos deram avisos, irmã... Nem isso merecemos. Sem ameaças. Sem suspeitas. Só a morte para calar. A morte para silenciar a ousadia, a coragem e a força.... Sim, irmã! Somos temidas por, corajosamente, ousar nossa força de sonhar e plantar esperanças entre nós e para além de cada uma! Semeaduras de resistência à cada passo desse longo caminho que cada vez mais se estende ao longe.

Mataram uma de nós. Tantas de nós.

Mataram como um recado: Cale-se, favela! Cale-se. periferia! Cale-se, gente preta!

Calem-se ela! Calem-se todas! Calem-se! Cale-se, democracia! Apenas, cale-se.

Eu conheço sua voz, irmã! Conheço seu grito de fibra... E sei... Tanto grito cansa o existir... Eu sei.

E te escrevo, minha irmã, porque juntas não morremos! Ao longe vamos todas! Quero te dizer: nossa dor não tem fim próximo, mas, ao seu lado, eu posso cuidar melhor do tanto que me dói. Nós juntas. Doemos pelo caminho.

Dói em todas. Dói pra todas. Dói...

Mataram uma de nós. Tantas de nós.

Quero te abraçar, irmã... Um abraço que te acolha da tristeza, um abraço que te seque o pranto, um abraço que lhe devolva o ar num respiro profundo... Mataram uma de nós... Tantas de nós... Tantas de nós que na voz de Marielle viram o sonho... É possível! Ela somos todas! Mataram Marielle. Tentaram nos matar todas!

Eu sei que você está exaurida, irmã... Eu sei... E olho para seu pé de tantos caminhos e nele vejo muitos de nossos pés repletos de passos. Muitos passos. Esses mesmo, irmã... Vieram de longe... Vão ao longe!

Quero que sigas, irmã! É o seu único modo de permanecer viva... Mesmo diante da morte de uma de nós. Tantas de nós. Siga, minha irmã... Você não vai só! Em cada um de nossos corpos inscreve-se a força de cada uma de nós. Tantas de nós.


Eu sei, irmã, eu sei como você se sente... Eu sei... Sei porque você, irmã, sou eu.

Eu. Marielle. As mães de Acari. Cláudia...

Cada uma de nós. Tantas de nós.

terça-feira, 6 de março de 2018

Pantera Negra: Excelente, mas não muito.


Dias se passaram até que, finalmente, eu pudesse chegar ao cinema e assistir Pantera Negra. Até chegar ali, me investi de todos os cuidados para não ler absolutamente nada que falasse sobre o filme, para poder me entregar à produção e àquilo que ela representa para o povo negro em diáspora. E se você já chegou até aqui e não quer ter informações sobre o filme, não leia!

Não é pouca coisa. Pantera Negra já é um divisor de águas e não deveria ser olhado como menos que isso. Com o tempo talvez saibamos o que significará para adolescentes, e até crianças, que hoje têm acesso ao filme, se reconhecerem na pele de personagens que são representados no imaginário da força, da beleza, da inteligência, do progresso. Definitivamente, não é pouca coisa!

Quem me dera adolescente poder estar no escurinho do cinema vendo uma Iansã lutando no capô de um carro cibernético comandado por uma jovem negra! Ou ainda há dúvidas de que a general Okoye, interpretada por Danai Gurira, é uma representação de Oyá numa luta de ventos, raios e trovões????

            “O vento bateu na saia de Iansã”.

Vestido vermelho esvoaçante e cabeça careca como que uma iaô entregue ao ritual de quem rege seu ori. Okoye sai nos brindando pelo filme à fora com pequenos deboches, bem colocados, diante dos desmedimentos que a branquitude vai construindo ao ser constantemente alimentada pelo racismo. A peruca de cabelo alisado sentida como descabida, a interação com T’Challa (Chadwick Boseman), na língua materna, por estar diante de um homem branco, a decisão de escolher a defesa da terra ao invés da vida de “seu” homem.

E segue a produção com diversas releituras, e uma infinidade de referências à padrões e valores nascidos e cultivados nas tradições de matriz africana. A ancestralidade, os mais velhos representados no Conselho de Anciãos, o “zelador” Zuri, interpretado brinlhantemente (como sempre!) por Forest Whitaker, que conduz os desafios de T’Challa com M’Baku, interpretadoWinston Duke, e com N’ Jadaka (Erick Killmonger) interpretado por Michael B. Jordan, sob as águas de uma imensa pedreira, como que numa referência ao poder criador que a ancestralidade negra reconhece no correr dos rios e mares.

Ritos negros reverenciados nas folhas cultivadas e guardadas por Zuri e que representam cura, vitalidade e força. Mais referências no ritual sagrado de coroação dos líderes de Wakanda...  O ser coberto pela terra para o encontro com a Ancestralidade. É ou não é a feitura de um borí???? E ainda que essa não tenha sido a intenção do roteiro, a imagem está ali. E, querendo ou não, nos atravessa em suas representatividades! A rainha mãe Ramonda (Angela Basset), que destituída do trono segue com o poder ancestral de macerar as folhas e fazer delas instrumento de revitalização e poder. Lembrei de Mãe Stela de Oxossi “sem folhas não tem orixá.”

Mas enfim, é uma produção de Hollywood. E como tal, não consegue escapar de alguns estereótipos bem problemáticos (existe estereótipo que não é problemático???) e bastante evidentes aos olhos calibrados pelo racismo e a opressão... No filme a voz que traz a razão da luta negra é silenciada sob a pele da vilania de Killmonger...

E não é difícil perceber. Logo no início do filme, N’Jobu, irmão do então rei T’Chaka, pai de T’Challa, diz o motivo de ter roubado de Wakanda o poderoso metal vibranium. Na fala de N’Jobu, aparecem pautas importantes para os movimentos negros em diáspora: a falácia da guerra às drogas e o super encarceramento. Pautas que são, inclusive, nascidas em solo norte americano diante do terror que os governos dos Estados Unidos estabeleceram contra a população negra ao longo dos anos. Há quem diga que N’Jobu era militante do Panteras Negras... E se o é, esse lugar de vilania é ainda mais grave e descarado.

Não consegue também, o filme, se desvencilhar da marca hollywoodiana do “branco gente boa”, que no final das contas tem papel fundamental na proteção do metal, e mesmo na guarda do povo de Wakanda. É o colonizador. É um agente da CIA. Mas é bonzinho. Tão bonzinho que está lá,aplaudindo, na assembleia geral da Organização das Nações Unidas, presenciando o momento em que a potência tecnológica de Wakanda é apresentada ao mundo como instrumento de pacificação e libertação aos povos... Ainda que essa organização não tenha, ao longo de sua história, voltado, de maneira significativa e resolutiva, seus brancos olhos para os problemas e potências do continente africano.

Mas vá lá. É um filme que cumpre seu papel na luta de negros e negras pela representatividade! Representatividade importa!!!! E muito. E como vibra o coração as imagens repletas de atrizes e atores negros. Todos padronizados, tá certo... Mas ainda assim, atores e atrizes negros.

Ah... As mulheres negras de Wakanda... Que são elas se não grande parte da representação de resistência das mulheres negras pelo mundo???? Guerreiras, tecnológicas, mães, astutas, amantes, sagazes. Belíssimas. Nós!

Nossos passos vêm de longe! E indo ao longe nossos passos não se encerram em Wakanda! Ainda temos muitas histórias a contar e a desconstruir!

“Para sempre!”