Minha irmã,
Sim!
Deixe que eu te chame de irmã... Sei que por aqui o colonialismo, a branquitude
e o racismo nos ensinaram que irmãs são apenas aquelas que partilham o mesmo
sangue... Como são limitados em se afetar... Não importa! Sei também, que na nossa
tradição de África, as irmãs se constroem pelos afetos que se criam no dia a
dia de sua comunidade. Mais que isso, sei que os laços que nos trazem nesse
longo caminho de “passos que vêm de longe” nos fazem irmãs pelo pé fincado
nessa diáspora tão dolorosa ainda... Dor e resistência nos unem. Então, te
chamo irmã porque nos fazemos irmãs. Pela dor. Pelo caminho. Pela luta!
Mataram
uma de nós. Tantas de nós.
Quis
falar com você, minha irmã, logo que fiquei sabendo da morte de Marielle...
Mas, confesso: Eu quis sumir. O susto, a
dor e a indignação acabaram me deixando sem palavras... Não sem voz!
Nunca sem voz! A prática de nos silenciarem acabou por nos ensinar a força que
tem nosso grito... Então, eu quis gritar... Quis gritar por Marielle, quis
gritar por Cláudia, quis gritar por tantas de nós sendo mortas de morte matada
e morte morrida... Sim irmã! Aprendi, que a morte morrida anunciada por nossas
ancestrais é essa aí que nos matam sem que atirem em nós...
Nos
matam pela falta de cuidado, nos matam pela privação direitos. Nos morrem pela
invisilibilidade que dia a dia caminha conosco, irmã... Independente do lugar
que ocupamos... Ali está ela nos escondendo do mundo.Pareada. Firme. Decidida.
Querem nos apagar, irmã... Dia e noite. Noite e dia. Todo dia. O tempo todo.
Saiba. Mais que ela, eu caminho com você. Eu vejo você. Somos mais que uma!
Mataram
uma de nós. Tantas de nós.
Quis
te escrever, minha irmã, porque sei que você está cansada... Sei que aí na sua
garganta tem um grito preso que não se solta se você gritar... Sei que você
está exausta... Sei que seu peito aperta como se alguém espremesse sua alma. E
sei, minha irmã, que você sabe, que mesmo tendo tanto incômodo morando no
corpo, você não pode desistir... Eu sei... Nem esse direito existe para nós...
Ser mulher preta é ter pela vida à fora a imposição da luta... Você não luta
apenas porque escolheu lutar, irmã. Você luta porque do contrário não lhe
permitem viver...
Mataram
uma de nós. Tantas de nós.
Vamos
morrendo sem que percebam que ser mulher preta é mais motivo para ser morta... Nem
gostam que a gente fale isso. Na verdade, não gostam de nossa voz e nem do que
temos a dizer... Nos mataram. Dessa vez, irmã, foi numa emboscada... No corpo
de Marielle atiraram em nós nove vezes... Miraram nossa cabeça, irmã, ali onde,
na nossa tradição, está o centro da vida. O Ori... Tiraram Marielle de nós e
tiraram, de novo, nós de nós mesmas... Nos tiram. Sem cessar. Nos roubam. Nos
agridem. E nos querem caladas. A qualquer custo. Mesmo com o custo da vida...
Nossa vida não lhes vale.
Não
nos deram avisos, irmã... Nem isso merecemos. Sem ameaças. Sem suspeitas. Só a
morte para calar. A morte para silenciar a ousadia, a coragem e a força.... Sim,
irmã! Somos temidas por, corajosamente, ousar nossa força de sonhar e plantar
esperanças entre nós e para além de cada uma! Semeaduras de resistência à cada
passo desse longo caminho que cada vez mais se estende ao longe.
Mataram
uma de nós. Tantas de nós.
Mataram
como um recado: Cale-se, favela! Cale-se. periferia! Cale-se, gente preta!
Calem-se
ela! Calem-se todas! Calem-se! Cale-se, democracia! Apenas, cale-se.
Eu
conheço sua voz, irmã! Conheço seu grito de fibra... E sei... Tanto grito cansa
o existir... Eu sei.
E
te escrevo, minha irmã, porque juntas não morremos! Ao longe vamos todas! Quero te dizer: nossa dor não tem fim próximo, mas, ao seu lado, eu posso
cuidar melhor do tanto que me dói. Nós juntas. Doemos pelo caminho.
Dói
em todas. Dói pra todas. Dói...
Mataram
uma de nós. Tantas de nós.
Quero
te abraçar, irmã... Um abraço que te acolha da tristeza, um abraço que te seque
o pranto, um abraço que lhe devolva o ar num respiro profundo... Mataram uma de
nós... Tantas de nós... Tantas de nós que na voz de Marielle viram o sonho... É
possível! Ela somos todas! Mataram Marielle. Tentaram nos matar todas!
Eu
sei que você está exaurida, irmã... Eu sei... E olho para seu pé de tantos
caminhos e nele vejo muitos de nossos pés repletos de passos. Muitos passos. Esses
mesmo, irmã... Vieram de longe... Vão ao longe!
Quero
que sigas, irmã! É o seu único modo de permanecer viva... Mesmo diante da morte
de uma de nós. Tantas de nós. Siga, minha irmã... Você não vai só! Em cada um
de nossos corpos inscreve-se a força de cada uma de nós. Tantas de nós.
Eu
sei, irmã, eu sei como você se sente... Eu sei... Sei porque você, irmã, sou
eu.
Eu.
Marielle. As mães de Acari. Cláudia...
Cada
uma de nós. Tantas de nós.