quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Não temas! É afrocentrismo! De novo...


Publiquei esse texto em outubro de 2015. Na ocasião eu vivia uma situação de racismo institucional . Tal como relato no texto.
Escrevi e o anunciei como um desabafo. Foi publicado no blog UHURU – Ativismo Negro, no qual tive a honra de ser escritora por um tempo...

Quase três anos se passaram... o Da Gata Preta nasceu também como um espaço de ativismo, afetos e afetações compartilhadas. O país onde vivo vai, desde esse tempo, mergulhado numa grave crise.

Adoeci. Recuperei-me! Reorganizei as estratégias de luta e resistência junto àquelas e àqueles que comigo caminham!

Cheguei e continuo o caminho. Muito mudou. Mas ele, o racismo, em sua forma institucional e suas tantas outras faces, permanece. Surpreendentemente, nesse caso,  no mesmo lugar geográfico e material.

Compartilho com vocês o desabafo de anos atrás... Pra aliviar, pra abraçar, pra seguir caminhando e acreditando que esse mundo pode ser melhor!

 Lá do lugar que relato, seguimos os dois. Eu e o racismo. Nós e o racismo. Eu e ele. Ele e nós. Entre reconhecimentos e enfrentamentos cotidianos a indignação se aquece e transforma a simples vivência em embate constante.   

Porque NÃO HÁ COMO NÃO SER ASSIM, e ainda assim permanecer viva!

O corpo vai se cansando. A esperança ás vezes fraqueja... Mas a alma???? Ah... A alma... Essa nunca, nunca, em tempo algum, vai deixar de seguir em seu desejo de ser livre!!! Ela junto de tantas mais...

“Porque nossos passos vêm de longe!” “Porque caminharemos em marcha! Até que todas sejamos livres!!!”

Ta aí! O que foi ontem. O que ainda é hoje!

  


E é um desabafo… Não adianta dizer que é outra coisa. A reflexão é fruto de me deparar com uma situação dessas que geram angústia… Angústia que, quem veio pra essa vida, pra esse país, como mulher preta, sabe bem o que é.
É muito provável que ao longo de minha passagem por esse blog você me ouça falar, citar, me referir ao Marcelo, que é meu grande parceiro nessa vida! Amizade é uma palavra que nem mais consegue definir o tipo de relação que vivenciamos e, além disso somos, nesse momento, companheiros de trabalho. Há quase cinco anos temos desenvolvido um tanto de coisas juntos. Invariavelmente, tratando de questões raciais. E é desse lugar que quero falar. Do momento em que uma mulher preta e um homem branco compartilham o mesmo espaço.
Aqui já é bom pontuar o equívoco semântico. Marcelo e eu, nessa sociedade, jamais ocuparemos o mesmo espaço simbólico. Ás vezes, até os espaços físicos são difíceis de serem compartilhados… E aí, não há amor (e isso não nos falta) que dê conta de reverter isso e todas as consequências que disso vêm. Eu poderia contar inúmeras histórias onde meus espaços são desrespeitados, roubados, violados quando em relação ao Marcelo… Amigos, família, cotidiano, espaço urbano… Mas, quero falar de trabalho.
Coordenamos juntos um programa de promoção e garantia de direitos humanos, com recortes de raça e gênero,  e já perdi a conta das tantas vezes em que fui invisibilizada no lugar criado também por mim… E quero falar do trabalho, porque nas sociedades brancas ocidentais onde vivemos, esse campo social é compreendido com uma valoração que demarca e implica outras tantas formas de relações.
E o relato começa assim: Pela segunda vez, em menos de um ano, vivenciamos, eu e Marcelo, um momento de embate com um determinado grupo em relação à certa diretriz de encaminhamento de ações. Tanto na primeira ocasião, quanto nessa, os ânimos se exaltaram, tanto de nossa parte, quanto por parte da interlocução. No entanto, nas duas ocasiões, ao se referir ao imbróglio das situações, uma das interlocutoras apontou a mim como a “causadora” do conflito, em virtude do “modo como falei”. Importante que eu diga, que das duas vezes estávamos discutindo questões relativas à garantia de direitos humanos atravessados pelos vieses de raça e gênero… Nas duas oportunidades de ânimos exaltados, Marcelo foi bem mais enfático em suas colocações (e eu diria “grosso” mesmo) do que eu. Mas ali, na cabeça dessa pessoa e de seus pares, o que interessou avaliar foi minha postura. Vê lá, gente minha! Uma mulher negra não pode ter voz e não pode partir para o enfrentamento. Onde já se viu? Já um homem branco na mesma, ou como no caso, numa postura muito mais belicosa, é apenas um homem branco em seu lugar habitual. Palmas para ele.
Interessa-me também pensar os modos como os pensamentos que determinaram a avaliação dessa pessoa em relação à minha postura são, inteiramente, organizados a partir de um referencial eurocêntrico, que por si só, já traz características castradoras, ordenadoras, classificadoras e hierarquizadoras. E veja você, como é difícil para o pensamento “brancocêntrico” considerar as diversas formas de estar no mundo e, nesse caso, de ser profissional. Os valores que trazemos atavicamente de nossa civilização em África são tidos por eles como menores, desorganizados e antiprofissionais, quando na verdade, constituem-se em formas libertadoras de construir e vivenciar todos os tipos de relações que podem, revolucionariamente, passar pela energia vital (Axé) da oralidade, da circularidade, da corporeidade, da musicalidade, da ludicidade, da cooperatividade. (GINO, 2015)
Esse pensamento faz com que pensem, que imparcialidade e neutralidade existem, e são parte a boa conduta profissional. Fazem com que acreditem que o domínio ou controle das emoções é requisito básico para ser um profissional de referência. Acreditam que há um determinado modo como o corpo deve ser controlado, vestido e adornado. Acreditam piamente que o controle do corpo e de suas variadas nuances são o que constituem, numa medida muito significativa, uma boa profissional e/ou um ambiente profissional… Pra mim, a palavra mais feia da língua portuguesa branca é essa: controle. A partir dela, um tanto de subjetividades é desenhada e assumida como a mais correta, a mais aceitável, a mais bonita, a mais profissional…
Mal nenhum haveria se assumissem esses valores para si, se os vivessem para si e se não nos envolvessem nisso. A grande questão é justamente essa! Porque vivendo nesse lugar para onde trouxeram nossos ancestrais, nós pretas e pretos assumimos desavisadamente esses valores, ainda que conosco carreguemos outros bastante incompatíveis a esses… Nessa trama eles nos fazem acreditar que;  não somos educados,  falamos alto,  não temos modos,  somos sexualmente oferecidas, não somos profissionais, somos demasiadamente passionais, que não nos vestimos bem, que as “necessidades” do corpo comandam todo o resto das situações e “que somos seres inclinados para uma irracionalidade vinculada às nossas emoções”. (GINO, 2015)
Podiam pensar assim lá no canto deles, mas o fato é que como temos que com eles dividir essa sociedade, eles acabam nos fazendo aprender que, de fato, somos e carregamos esse monte de problemas, de defeitos, de limitações, de exacerbações, que nos impedem de ser tão polidos, finos, educados e tratáveis como eles são…  Se vêm assim ainda que descendam de um povo que invadiu nossa terra, roubou nossos metais, nossas produções artísticas, nos sequestrou, demonizou nosso sagrado… Permanecem violando nossa existência e nos fazendo acreditar que o problema é apenas nosso. Rotineiramente professam que qualquer apontamento nosso à conduta colonial, que ainda hoje carregam, caracteriza nossa “mania de perseguição” ou nosso “radicalismo”… Sempre há outra coisa pra explicar o que de fato é: racismo.
De todas as coisas que essa circunscrição da subjetividade provoca, uma delas é o adoecimento… Viver situações como as que vivi nesses dois momentos são porta aberta para crises hipertensivas, males gástricos, sofrimentos mentais e uma gama de desarmonias biológicas que acometem, com especial intensidade, a população negra… Estar diante das violências e violações a que somos submetidas quando acessamos determinados espaços, que não foram por eles pensados para nós, é como entregar o corpo ao açoite que os antepassados desse pessoal inventaram para controlar nosso corpo e dizimar nossa alegria. E foi com a alegria desse corpo é que atravessamos o tempo.
E não há perfeição entre as águas desse mundo. A terra de onde viemos também tinha seus modos de controlar, subjugar, humilhar… No entanto, seja por razões que esse ponto da história não nos permitiu ainda alcançar, nenhum desses modos se espalhou pelo mundo como um valor universal e intocável. Também é bom que se diga que nos meandros dessa trama, há homens e mulheres brancos, que mesmo carregando em sua genealogia o subjugamento material e simbólico da população negra, são parceiros ativos, envolvidos e inteiramente comprometidos com a igualdade racial em suas expressões materiais e simbólicas. Como é o caso de Marcelo!
Dito isso, é bom encerrar resgatando o quanto pensar afrocentradamente pode ser um diferencial para todas as relações que temos que vivenciar e construir! Quando se pensa afrocêntricamente não há a necessidade de que uma experiência de estar no mundo exclua a outra. Morte e vida, saúde e doença, alegria e tristeza, sagrado e profano, prazer e dor, acerto e erro, grito e silêncio estão em constante diálogo produzindo-se, na medida em que são duas faces de uma mesma realidade e, por isso, são constantemente coafetados. Quando se pensa afrocentricamente o corpo não precisa de mecanismos de controle e coerção, porque é no corpo que as experiências se inscrevem, e é pelo corpo que as dualidades se integram e dialogam! O corpo é uma instância sagrada porque carrega a vida surgida do sopro inicial carregado de Axé, “nossa forma impar de existir e estar no mundo” (idem). Não é preciso temer o corpo, se envergonhar dele, escondê-lo, nega-lo, normalizar seus volumes! A experiência corporal é libertadora! E a experiência da liberdade é, quiçá, a mais poderosa que alguém pode vivenciar.
No fim desse desabafo quero dizer sobre a pessoa que viu em mim a representação do que ela nomeia de “antiprofissionalismo”… Coitada. Coitada porque certamente vai seguir pela profissão, e provavelmente pela vida, controlando sua voz, suas emoções, seu corpo e sua possibilidade de libertação. Coitad@ de tudo que ela representa nesse lugar para onde viemos e que até hoje não nos aceita… Coitad@s… Diante da potência que trazemos de nossa ancestralidade não conhecem outro caminho senão o de violar para conter o medo diante do que somos e representamos. Medo. Racismo tem tudo a ver com muito medo… Mais afoita, poderia dizer também que racismo tem a ver com inveja… Vá saber…
A eles a nossa voz alta, nossas emoções vividas, nosso corpo livre e nossa infinitude… Porque assim aprendemos! Transformar em resistência e liberdade tudo o que de ruim nos deram. O que eles dizem ver como inapropriação é seiva da mais genuína força que em séculos de violação jamais conseguiram nos arrancar… Jamais conseguirão.
Axé!