Quando
vi a imagem de Valéria Lúcia dos Santos jogada ao chão e algemada foi como se
meu corpo pudesse sentir todo o peso daquela cena... Nela estavam Valéria, eu e
todas as outras que vão por aí ousando a serem e estarem além do que a
branquitude imaginou pra nós.
Valéria
sentiu na pele. Foi no corpo dela aquela violência, e não há como reivindicar
aquela dor e aquela humilhação. Mas nós, corpos negras, sabemos em cada milímetro
os recortes daquela cena... Ser a louca, a desvairada, a radical, a agressiva, a exagerada a ponto de ter que ser contida como um sinal do quanto que ali não
cabemos. Ali. Naquele lugar e por outros tantos. Lugares símbólicos e concretos
de tudo aquilo que representa o nosso não poder ser, o nosso não poder ir, o nosso
não poder falar, o nosso não. Sempre não. Das portas que se fecham, dos silêncios
que nos impõem.
A
Valéria no chão é o retrato bem desenhado de todas nós jogadas na
invisibilidade, no silêncio, no descaso, no desrespeito, no assédio. Qual saúde
mental resiste à isso? Qual experiência de afeto se constrói no meio de tanta
violência? Diária. Ininterrupta. Presente. Forte.
Mas
não. Vão nos dizer que não é nada disso! Que aquele assédio não foi bem assim.
Que aquele desrespeito não é bem desse jeito, que aquele descaso é um mal
entendido...
Mal
entendidas, mal aceitas, mal vividas, mal quistas, mal gente... Assim é. Assim nos
pintam com as tintas impressas em nossos corpos que avançam! Que se querem
livres! Que se sabem firmes! Que caminham poderosos. Porque é assim! Caminhando.
Avançando! Não tem volta!
“Uma afronta! Lá vai ela... Aquela nêga
metida! Voluntariosa! Indisciplinada! Barraqueira! Insubordinada! Olha lá! Não
tem modos, aquela crioula! Não deixem que vá! Invente coisas a seu respeito!
Crie discursos! Imagine regras! Limite-a! Faça com que se sinta doida! Sem lugar,
sem rumo, sem destino, sem credibilidade, sem confiança! Escrevam nela o que
dizemos que ela é! Maldita!”
Mas
as palavras não saem. Elas são só gestos, olhares, silêncios, combinados,
acertos. Não são palavras de verdade. Não são olho no olho. São espreitosas.
São covardes. São tirânicas e violentas. Não são ditos. São não ditos que nos
querem no chão. Humilhadas. Algemadas. Caladas.
Sinto
em mim as mãos que algemaram Valéria. Aqui elas agarram o meu pescoço. Tentam despedaçar-me, porque temem a liberdade
que há em mim... Em minhas entranhas. A liberdade que as minhas de antes conquistaram para mim, para
Valéria, para todas nós... Que mesmo ao chão, estamos livres! Avançando! Não
tem volta!
Adoecidas. Sim! Vamos falar de adoecimento. Adoecidas, às vezes tristes, desacreditadas, massacradas, mas... Avançando!
Ninguém fala por nós! Ninguém nos impede sem que tomemos a rédea do jogo jogado
há séculos! Não mais! Acabou! Do chão que nos jogam levantamos contando outras
histórias... De mais resistência! De mais fé! De mais força! Porque daqui não tem
volta!
Força
é o que temos ainda que não queiramos ter... Porque ser forte cansa. Adoece.
Ninguém é imbatível. E nós, corpos negras, vamos carregando pela guerra o desejo de não precisar da guerra para viver... Queremos vida. Vida apenas. Simplesmente...
Ninguém é imbatível. E nós, corpos negras, vamos carregando pela guerra o desejo de não precisar da guerra para viver... Queremos vida. Vida apenas. Simplesmente...
O
resultado da investigação sobre o episódio onde Valéria foi jogada ao chão e
algemada é mais um capítulo dos muitos estratagemas daqueles que não nos querem
vivas e avançando...De vez em quando se travestem de Estado, de vez em quando são uns, outros e
outros uns. Segundo o julgamento da comissão que investigou o caso, Valéria se
atirou ao chão porque quis, e foi contida pela polícia numa atitude de proteção.
Não
há o que dizer e nem novidades há. A história que nosso corpo preto vive nunca
é a história que interpretam de nós. As leituras sobre nós não consideram quem
somos, porque quem escreve os textos não considera que somos. A gente não é. A
gente não está. A gente não pode chegar. Por isso a chegada é assim. Repleta de
hostilidade, violência e sutileza. Doidas somos nós. Loucas somos nós. Na
caneta de quem escreve essas narrativas tem sangue que traça a escrita. Nos desconsiderando.
Nos apagando. Nos morrendo no que trazemos, no que falamos, no que somos!
Para
que essas narrativas prosperem é preciso inscrever em nossos corpos e nossas
trajetórias as letras que inventam nossa incompetência, nosso destempero, nosso
despreparo, nossa inadequação. É preciso inventar para desinventar o que somos,
o que temos, o que sabemos para que se invente aquilo que esperam que sejamos:
"Quem é você? De onde você tirou isso aí que
você está falando? Qual a sua formação? Mas qual é a metodologia que você
utiliza pra desenvolver esse trabalho? Mas onde você aprendeu isso?
Já
ouvi todas essas perguntas. Ouço. Diariamente. Uma aqui, outra ali, por de trás
de um sorriso que emoldura o desejo de que eu e minha história não reconheçamos
o que de fato está acontecendo: o desmerecimento, o desrespeito, o descaso. Por vezes a inveja.
Sim!
Vamos falar de inveja! A inveja que nos
joga no chão e nos algema. Nos adoece e nos aprisiona nas caixas de
ansiolítico, nos quadros depressivos, nas tristezas medicalizadas... Algemas
nos braços, nos passos... A inveja da potência que talvez venha do nada. A
inveja da voz que ecoa realidades vividas, conhecidas, compreendidas e
estudadas... Ah... A inveja... Racismo é estrutura ideológica que conta com
milhares de micropolíticas e estratégias para se manter. Não tenha dúvida, a
inveja é uma das ferramentas de manutenção do racismo.
E
seguimos algemadas e atiradas ao chão. Levantando dele na reinvenção do que
dizem de nós! Nos reinventamos a partir de nossas próprias histórias, de nossas
próprias possibilidades. Avançamos... Como num cabo de guerra, com as mãos machucadas, os pés fincados no presente, no jogo, na trapaça que vem do outro lado... Aquele lado que não se identifica direito... É nebuloso, escondido, ardiloso, covarde...
E avançamos
puxando com força, garra e coragem cada centímetro dessa corda para que se libertem as nossas histórias... Nossa mente... Nossa saúde... Nosso corpo...
Porque daqui em diante é assim... não tem volta.
foto retirada de http://www.esquerdadiario.com.br/Mulheres-negras-capitalismo-e-revolucao-16536