segunda-feira, 21 de outubro de 2019

A Maju, a Jô, eu, a Gilmara e os penicos




Quando se separou do marido, há anos atrás, o pai da Jô disse à ela, que ela deveria tomar cuidado, porque mulher negra, e ainda separada, era penico que qualquer cachorro mija...


Me vi com um penico na cabeça. Ali, bem posicionado recebendo todo tipo de merda e excremento produzido pelas práticas racistas. Cada vez mais cotidianas e cada vez mais se esmerando em serem sutis e enormemente violentas.


O velho homem preto dizia à Jô sobre a sua experiência. Talvez sobre a convivência com mãe, avós, tias, primas, irmãs ... Mulheres negras não têm garantida a sua dignidade. Não importa o tempo histórico. O preto velho não disse, porque talvez não soubesse, mas o estado civil não traz diferenciações para a experiência de deslegitimação que o racismo ensina. À todas é destinado o mesmo penico de merda assentado na cabeça. Na existência. Não há homem ou situação conjugal nessa vida que interrompa, suspenda ou amenize a experiência de ser mulher negra. Todas nós carregamos o tal penico. Por “todo lado. O tempo todo.”


Dias atrás vi o penico na cabeça da Maju Coutinho. Jornalista, âncora de um importante telejornal, que teve contabilizado seus erros durante a exibição do programa. Isso porque a régua do racismo é cruel, dura, apertada e implacável. Não tem frações ou números mistos. Só números inteiros que por vezes, a maioria das vezes, escapam ao olhar e ao sentimento de quem não está naquele corpo. Ser mulher negra, só mulher negra entende.


O racismo e a branquitude (são diferentes?) entendem que uma mulher preta num espaço de poder ou de visibilidade tem que ser medida, avaliada, escrutinada, questionada, mensurada para, enfim, ser desmerecida e deslegitimada. A deslegitimação racista ocorre para que nenhuma de nós, pretas, esqueçamos qual é, para eles, o nosso lugar. O de origem, o verdadeiro, aquele de onde não deveríamos ter saído. Aquele da colônia, da servidão, da obediência. Desejam, sobretudo, cordialidade, silêncio e mansidão. Para o racismo a bancada de um telejornal não é o lugar da Maju...


E mal descansei os olhos e a alma, já avistei o penico de novo. Dessa vez, na cabeça da Gilmara, que no exercício de sua atividade profissional foi questionada por uma aluna sobre determinada conduta na correção de uma prova. Questionar não é problema. Nunca deve ser! Nesse caso, o penico recebeu excrementos do racismo, quando a aluna comparou Gilmara à um professor. Homem e branco. Ele sim, segundo essa pessoa, legitimado em seu lugar de poder como professor. Ela? Ela só mais uma preta no lugar errado, que para ser lembrada desse “erro”, que a possibilidade do acesso proporciona, precisa ser deslegitimada de seu lugar de poder e conhecimento. “Mas foi o professor fulano quem disse”. Se ele disse é para estar certo. Se um homem branco disse o assunto está encerrado. Ele sabe. Ele pensa. Ele é o dono do conhecimento. É assim que o racismo ensina. Uma mulher preta é só uma intrusa, mal quista, que não deve abrir a boca, me dirá então, demonstrar algum tipo de conhecimento e de apropriação desse conhecimento. “Cala a boca, negra”, é o que diriam, se pudessem.


Talvez se dissessem o “jogo” seria mais justo, porque além de não ter esse monte de aborrecimentos, não teríamos também a pecha de loucas que vêm coisas onde não tem. Num episódio da série Scandal, de Shonda Rhimes, cuja protagonista, Olívia Pope, é uma mulher preta, tal como Shonda, um dos personagens responde à uma entrevista coletiva. Nela, uma jornalista faz uma insinuação sobre a ausência de Olívia naquele momento, fazendo uma referência ao modo como a personagem sempre tem algo a dizer sobre qualquer coisa. Enfurecido, o personagem que responde às perguntas da coletiva, fala sobre a “síndrome do cachorro louco”, e a descreve apontando o jeito como os brancos lançam determinadas afirmações sobre as pessoas/corpos negras como se fossem afirmativas inocentes, e que só são facilmente identificadas por quem é a vítima do ato racista, que passa a ser, invariavelmente, identificada como louca. Afinal, ninguém mais percebe o que DE FATO está acontecendo ali. Esse é um estratagema bastante sofisticado e muito utilizado na atualidade.


O lugar da louca é habitual às mulheres pretas. Também ocupamos, na fala racista, o lugar da barraqueira, da difícil, da rancorosa, da ressentida, da arrogante. Todo lugar é criado para que o ocupemos e deixemos livres os espaços de poder onde não deve caber nossos corpos. Se corpos dóceis e obedientes, vá lá! Mas as pretas que ousam reivindicarem-se como tal e/ou que questionam determinadas posturas em relação à suas existências... Não pode!!! O racismo que alimenta a branquitude (e vice versa?) logo grita que é preciso deslegitimar. Silenciar. Tirar da cena.


E as formas de deslegitimação vão se alternando entre as velhas nossas conhecidas e outras que vão trocando as roupagens para dificultar sua identificação, e confundir quem é cotidianamente vítima do racismo. Dia desses, uma pessoa muito querida, no meio de uma conversa me disse que ali, naquele espaço onde estávamos, as pessoas tinham medo de falar comigo...


 Cri... Cri... Cri...


Fiquei eu cá pensando sobre o medo branco... Célia Maria de Azeredo o identificou em seu clássico “Onda negra, medo branco”, onde fala sobre o negro no imaginário da elite brasileira do século XIX. E não ficou lá. Tá aqui. Vivo e ávido o tal do medo branco.


Que coisa curiosa, não é mesmo? Não tenho interesse NENHUM, de à essas alturas da partida ficar didatizando e pedagogizando branco, sem que me paguem pra isso. Chega! E chega até para aqueles por quem tenho afeto.  Não dá mais para ficar parada nesse ponto quando há inúmeras possibilidades de enfrentar, de fato, de maneira mais comprometida, o racismo e seus estratagemas. Já passou da hora de branco aprender, por conta própria, que É SIM, responsável pela manutenção e persistência do racismo. Ainda mais responsável pelo modo como esse racismo parece cada vez mais fortalecido. Se nós nos temos com o legado da senzala, se ajeitem, brancos, com a herança da casa grande! E APRENDA: Do mesmo modo que você diz sobre meu corpo, o seu corpo TAMBÉM é um discurso. Vire-se com isso! Suas ações são, sim, TODAS demarcadas por sua pele branca! E isso é problema SEU.


 Mas, o fato é que, naquela situação, fiquei pensando neles, e no medo que disseram que eles têm de mim naquele lugar... Será que pensam que ao se aproximarem eu vou morder a cara deles? Pular em seus pescoços? Roubar-lhes alguma coisa? Cuspir-lhes as caras? Unhar-lhes o corpo? Ou será que temem algum feitiço que eu possa disparar à eles?


O medo branco é que é o problema. A branquitude racista (tem diferença?) é que é o problema, e não eu com minha personalidade, meus modos e jeitos de estar na vida. O medo branco, motivado pelo racismo é que deslegitima ao desumanizar... Ter medo de mim é desumanizar-me. E a experiência da desumanização é muito comum à qualquer pessoa preta. Às mulheres negras é comum, cotidiana, repetitiva e incessante. “Todo lado. O tempo todo.” Estava lá o penico na minha cabeça. De novo. E de novo e de novo...


E, por todas as vezes eu tento me livrar do maldito penico. Outras tantas mulheres pretas vão, juntas, buscando formas de sumir, de vez, com esse penico de nossas cabeças... E aí, no meio da conversa, a Jô me disse que a faxineira, uma mulher branca, lhe ofereceu um pote de pasta de limpeza, e um pano sujo, após ela solicitar à ela que limpasse a parte de cima de seu armário, que estava imunda... “eu não alcanço aí, quando você puder, você mesma limpa.” Disse ela à Jô entregando-lhe o “material” de limpeza.


A faxineira branca foi mais sincera e corajosa do que as outras e outros todos brancos que circulam por nossas vidas quando acessamos alguns territórios onde antes não existia a presença negra. A faxineira branca disse, com a lata de pasta e o pano sujo, que ali não é nosso lugar! Disse o quanto lhe incomoda receber “ordens” de um corpo como o nosso. Disse o quanto lhe é desconfortável ouvir-nos em nossos espaços de poder  e legitimidade. Disse que nossa voz não é pra ser ouvida. Disse que em determinados territórios nós simplesmente não devemos existir.


A faxineira branca explicitou, em sua atitude racista, o que circula nos sentires de todos os outros que se calam, mas que não suportam que possamos decidir, que possamos não servi-los, que possamos não fazer do jeito deles, que possamos dizer não, que possamos saber mais, ser mais bonitas, mais inteligentes, mais engraçadas. Mais, mais, mais. Sempre intuí que racismo tem muita relação com inveja...


Num episódio de “Todo mundo odeia o Chris”, quando o protagonista decide parar de estudar, seu antagonista, que durante as quatro temporadas da série o perseguiu de maneira ostensiva e agressiva, o convida para um passeio. Espantado com a atitude, Chris pergunta o motivo, e Joey Caruso responde, em outras palavras, que agora que ele pararia de estudar, não seria mais uma ameaça, e que seu desejo de subjuga-lo provinha de uma admiração em relação ao seu potencial, que o mesmo, Caruso, não possuía. Talvez Chris Rock, o autor/roteirista da séria pense igual à mim...  


Invejosos ou não, o fato é que o racismo os faz não suportarem. Não suportam, mas, a maioria, principalmente nas instituições, se cala. E, no silêncio, lançam olhares, insinuam, limitam ações, impedem progressos, criam maledicências para seguirem nos deslegitimando e enchendo da merda racista deles os penicos que eles mesmos puseram em nossas cabeças...


“Cambada”! Diria Maria Joana, minha avó. E, certamente, seria chamada de raivosa, assim como tem branco lendo isso agora e chamando a mim de “agressiva”.


Se o velho preto, pai da Jô, aqui estivesse, poderia ver que muito pouca coisa mudou, mas que nós, os pretos e pretas, estamos avançando. Tão somente por nossa conta. Nós, por nós. E nada mais. Seguem nos matando, nos ridicularizando, nos enlouquecendo, nos apartando, nos adoecendo... Porque o certo é que não é diferente para nenhuma de nós! Maju, Jô, eu, Gilmara e todas as outras. Fartas de penicos sobre nossas cabeças! Cansadas de toda essa merda racista.


Mas a gente segue! Na bancada do jornal, nas salas de aula, em outros espaços de poder. Ainda poucas. Quase ausentes... Mas... Fortalecendo a voz, firmando o corpo e quebrando, nas caras deles, os malditos penicos.


Na minha cabeça, não! Na cabeça de todas nós, chega!

domingo, 6 de outubro de 2019

Com-Fraternizar e o que aprendi com o Tiago




Aproxima-se o mês de novembro, o mês que não sendo o derradeiro do ano é o que anuncia que, sim, o ano vai acabar! Um ciclo vai se encerrar como se fosse a última chance de providenciarmos um jeito de dar conta de todas as querelas do ano ainda em curso... E, nesse movimento de tentativa de correr contra o tempo, vem junto, de um monte de jeito diferente, as confraternizações.


Confraterniza-se na família, no grupo de amigos que estudaram juntos, com as vizinhas, com o pessoal da academia. Todo mundo que passa o ano junto começa, em novembro (alguns até antes). a programar as festas de confraternização. Não se sabe ao certo o que motiva cada um desses encontros comemorativos, mas eles acontecem, e se tornaram quase que uma obrigação ritualística pouco preenchida de significados.


E por falar em significados cá eu penso no de onde vem a palavra confraternizar e, vasculhando vivências e dicionários posso dizer que a palavra tem relação íntima com convívio fraterno. Dentre as definições originárias do latim, mesma raiz da língua portuguesa (ou seria língua brasileira?), vê-se que a palavra confraternizar , oriunda de conFRATERNItas, traz misturada em si a ideia de fraternidade, o que então nos leva a conceber que, em  sua formação léxica podemos defini-la como um encontro entre pessoas que convivem de maneira fraternal. Ao pé da letra, confraternizar significa, de acordo com vários dicionários disponíveis na internet, “conviver fraternalmente, tratar como irmão” e ainda, “comungar com os pontos de vista, as convicções, ou estado de espírito de alguém”.


Aí não tem jeito! Me vem uma gargalhada bem gorda quando penso em alguns grupos que, aberta a temporada de “fim de ano”, começam a se organizar para, juntos, celebrarem o ano que se encerra... Que cena triste sou capaz de visualizar...


O significado se esvazia diante do significante. O ciclo aproxima-se do fim e, nem mesmo a ideia de ciclo é compreendida pela maioria das pessoas que, por obrigação, se juntam em torno de uma festa com motivações natalinas. Aí então é que tudo piora... O natal, festa que deveria ter motivação sagrada para algumas pessoas, é usado, vivido e compartilhado apenas como dita a economia de mercado capitalista. Comer e comprar. Não importam muito os sentimentos envolvidos, não importa, sequer, a compreensão do momento como algo que, para algumas pessoas que professam determinada fé, é carregado de simbologias que envolvem, DE FATO, a fraternidade, o companheirismo e a comunhão.


Nada disso! No “script” das confraternizações de final de ano não está anotado NENHUM tipo de referência ao modo como foi vivido o ciclo que se encerra. Não importa. Importa é se juntar, gastar dinheiro, comer de maneira farta e só! Tão SÓmente SÓ. Em algumas dessas comemorações a sensação mais evidente que tenho/tinha é essa, uma solidão distribuída em várias performances solitárias e pouco carregadas dos sentimentos que remetem à fraternidade, à comunhão, à celebração da memória do ciclo que se encerra.


Viver os ciclos e ter a consciência deles é importantíssimo quando pensamos na caminhada dos grupos e da humanidade de forma geral. Ainda mais importante é compartilhar os ciclos também na perspectiva de compreender o que deles se sorve, se estrai, se impregna no corpo para anunciar-se ao novo movimento que não cessa na partida de um, e na chegada do outro. Porque ciclos não são lineares. Ciclos são circularidades repletas de ires e vires que nos dizem muito de nós, de onde estamos, com quem estamos e, para onde queremos ir!


E nessa conversa toda me acompanha a memória de Tiago... Tiago Adão Lara! Meu amigo, tão amado e tão querido que, na semana passada cumpriu, de maneira brilhante, seu ciclo de vida na terra e partiu para a vivência irmanada com a infinitude do universo.


Pensando nas pessoas que se juntam por obrigação, pra cumprir roteiros, para agradar o chefe, e para se integrarem à ditadura do capital sobre os corpos e os sentimentos, me recordo das inúmeras confraternizações, de fim de ano ou não, em que tive a alegria e a honra de estar ao lado de Tiago e de tantos amigos e amigas com quem eu vivi (e vivo!) ciclos de fraternidade, ternura e comunhão. Sempre tendo em mente que viver fraternalmente não significa DE MODO ALGUM viver na ausência do conflito e da discordância...


Recordo-me do tanto que aprendi com Tiago e com pessoas como ele sobre o significado da partilha. O significado de se emprenhar de vida e de se afetar por ela! O significado de encontrar-se com e na outra, e de fazer desse encontro a prática do cotidiano, não se prendendo às datas impostas para a vivência e a expressão dos afetos. E aí, recordando essas confraternizações de fim de ano, que  pra muita gente mais parecem sofrimento e desconforto, do que expressam a alegria do encontro, me lembro também de Tiago dizendo à mim, numa determinada ocasião, que o mais importante do processo é a avaliação do processo, antes que outro se inicie.


Naquele contexto cabia bem a palavra avaliação, mas se eu pudesse agora conversar com o Tiago sobre esse texto, arrisco-me a dizer que, provavelmente, ele diria que o mais importante do ciclo é olhar para ele refletindo o tanto de vida que ele carrega, e como é/foi vivida a vida que está nele...


Lamento os ciclos que se encerram sem serem olhados, refletidos, aprendidos para a significância de novos ciclos... Lamento a pasteurização do ato de celebrar e de promover encontros... Lamento a total ausência de reflexão sobre os significados presentes na potência da vida cotidiana...  Lamento o tanto que se perde, que perdemos a oportunidade da fraternidade. Lamento o encontrar-se apenas para o cumprimento de uma agenda imposta.


Lamento, porém celebro a alegria de buscar-me nessa vida em meio à explosões de encontros repletos de significado, de alegrias, de saberes, sabores e sabenças me comprometendo a romper, o quanto me for possível, com tudo aquilo que anuncia o esvaziamento do potente significado do encontro, do ciclo e da confraternização. Da vida! Aprendi tanto, tanto, tanto da vida com o Tiago que nem tenho a pretensão de aqui tentar dizer tudo o que sendo meu, de Tiago veio...


Grata, Tiago... Grata por tanto aprendizado nas muitas oportunidades de viver, corajosamente, a fraternidade. Sigo COM - FRATERNIzando ao seu modo, e em Ti, meu amado amigo! Potente... Corajosa... E revolucionariamente!