Quando se separou do marido, há anos
atrás, o pai da Jô disse à ela, que ela deveria tomar cuidado, porque mulher
negra, e ainda separada, era penico que qualquer cachorro mija...
Me vi com um penico na cabeça. Ali, bem
posicionado recebendo todo tipo de merda e excremento produzido pelas práticas
racistas. Cada vez mais cotidianas e cada vez mais se esmerando em serem sutis
e enormemente violentas.
O velho homem preto dizia à Jô sobre a
sua experiência. Talvez sobre a convivência com mãe, avós, tias, primas, irmãs ...
Mulheres negras não têm garantida a sua dignidade. Não importa o tempo
histórico. O preto velho não disse, porque talvez não soubesse, mas o estado
civil não traz diferenciações para a experiência de deslegitimação que o
racismo ensina. À todas é destinado o mesmo penico de merda assentado na
cabeça. Na existência. Não há homem ou situação conjugal nessa vida que
interrompa, suspenda ou amenize a experiência de ser mulher negra. Todas nós
carregamos o tal penico. Por “todo lado. O tempo todo.”
Dias atrás vi o penico na cabeça da
Maju Coutinho. Jornalista, âncora de um importante telejornal, que teve
contabilizado seus erros durante a exibição do programa. Isso porque a régua do
racismo é cruel, dura, apertada e implacável. Não tem frações ou números
mistos. Só números inteiros que por vezes, a maioria das vezes, escapam ao
olhar e ao sentimento de quem não está naquele corpo. Ser mulher negra, só
mulher negra entende.
O racismo e a branquitude (são diferentes?)
entendem que uma mulher preta num espaço de poder ou de visibilidade tem que
ser medida, avaliada, escrutinada, questionada, mensurada para, enfim, ser
desmerecida e deslegitimada. A deslegitimação racista ocorre para que nenhuma
de nós, pretas, esqueçamos qual é, para eles, o nosso lugar. O de origem, o
verdadeiro, aquele de onde não deveríamos ter saído. Aquele da colônia, da
servidão, da obediência. Desejam, sobretudo, cordialidade, silêncio e mansidão.
Para o racismo a bancada de um telejornal não é o lugar da Maju...
E mal descansei os olhos e a alma, já
avistei o penico de novo. Dessa vez, na cabeça da Gilmara, que no exercício de
sua atividade profissional foi questionada por uma aluna sobre determinada
conduta na correção de uma prova. Questionar não é problema. Nunca deve ser!
Nesse caso, o penico recebeu excrementos do racismo, quando a aluna comparou
Gilmara à um professor. Homem e branco. Ele sim, segundo essa pessoa,
legitimado em seu lugar de poder como professor. Ela? Ela só mais uma preta no
lugar errado, que para ser lembrada desse “erro”, que a possibilidade do acesso
proporciona, precisa ser deslegitimada de seu lugar de poder e conhecimento. “Mas
foi o professor fulano quem disse”. Se ele disse é para estar certo. Se um
homem branco disse o assunto está encerrado. Ele sabe. Ele pensa. Ele é o dono
do conhecimento. É assim que o racismo ensina. Uma mulher preta é só uma
intrusa, mal quista, que não deve abrir a boca, me dirá então, demonstrar algum
tipo de conhecimento e de apropriação desse conhecimento. “Cala a boca,
negra”, é o que diriam, se pudessem.
Talvez se dissessem o “jogo” seria mais
justo, porque além de não ter esse monte de aborrecimentos, não teríamos também
a pecha de loucas que vêm coisas onde não tem. Num episódio da série Scandal,
de Shonda Rhimes, cuja protagonista, Olívia Pope, é uma mulher preta, tal como Shonda,
um dos personagens responde à uma entrevista coletiva. Nela, uma jornalista faz
uma insinuação sobre a ausência de Olívia naquele momento, fazendo uma referência
ao modo como a personagem sempre tem algo a dizer sobre qualquer coisa. Enfurecido,
o personagem que responde às perguntas da coletiva, fala sobre a “síndrome
do cachorro louco”, e a descreve apontando o jeito como os brancos lançam
determinadas afirmações sobre as pessoas/corpos negras como se fossem
afirmativas inocentes, e que só são facilmente identificadas por quem é a
vítima do ato racista, que passa a ser, invariavelmente, identificada como
louca. Afinal, ninguém mais percebe o que DE FATO está acontecendo ali. Esse é
um estratagema bastante sofisticado e muito utilizado na atualidade.
O lugar da louca é habitual às mulheres
pretas. Também ocupamos, na fala racista, o lugar da barraqueira, da difícil,
da rancorosa, da ressentida, da arrogante. Todo lugar é criado para que o
ocupemos e deixemos livres os espaços de poder onde não deve caber nossos
corpos. Se corpos dóceis e obedientes, vá lá! Mas as pretas que ousam
reivindicarem-se como tal e/ou que questionam determinadas posturas em relação
à suas existências... Não pode!!! O racismo que alimenta a branquitude (e vice
versa?) logo grita que é preciso deslegitimar. Silenciar. Tirar da cena.
E as formas de deslegitimação vão se
alternando entre as velhas nossas conhecidas e outras que vão trocando as
roupagens para dificultar sua identificação, e confundir quem é cotidianamente
vítima do racismo. Dia desses, uma pessoa muito querida, no meio de uma
conversa me disse que ali, naquele espaço onde estávamos, as pessoas tinham
medo de falar comigo...
Cri...
Cri... Cri...
Fiquei eu cá pensando sobre o medo branco...
Célia Maria de Azeredo o identificou em seu clássico “Onda negra, medo branco”,
onde fala sobre o negro no imaginário da elite brasileira do século XIX. E não
ficou lá. Tá aqui. Vivo e ávido o tal do medo branco.
Que coisa curiosa, não é mesmo? Não
tenho interesse NENHUM, de à essas alturas da partida ficar didatizando e
pedagogizando branco, sem que me paguem pra isso. Chega! E chega até para
aqueles por quem tenho afeto. Não dá
mais para ficar parada nesse ponto quando há inúmeras possibilidades de
enfrentar, de fato, de maneira mais comprometida, o racismo e seus
estratagemas. Já passou da hora de branco aprender, por conta própria, que É
SIM, responsável pela manutenção e persistência do racismo. Ainda mais responsável
pelo modo como esse racismo parece cada vez mais fortalecido. Se nós nos temos com o
legado da senzala, se ajeitem, brancos, com a herança da casa grande! E APRENDA: Do mesmo modo que você diz sobre meu corpo, o seu corpo TAMBÉM é um discurso.
Vire-se com isso! Suas ações são, sim, TODAS demarcadas por sua pele branca! E
isso é problema SEU.
Mas, o fato é que, naquela situação, fiquei
pensando neles, e no medo que disseram que eles têm de mim naquele lugar...
Será que pensam que ao se aproximarem eu vou morder a cara deles? Pular em seus
pescoços? Roubar-lhes alguma coisa? Cuspir-lhes as caras? Unhar-lhes o corpo?
Ou será que temem algum feitiço que eu possa disparar à eles?
O medo branco é que é o problema. A branquitude
racista (tem diferença?) é que é o problema, e não eu com minha personalidade,
meus modos e jeitos de estar na vida. O medo branco, motivado pelo racismo é
que deslegitima ao desumanizar... Ter medo de mim é desumanizar-me. E a
experiência da desumanização é muito comum à qualquer pessoa preta. Às mulheres
negras é comum, cotidiana, repetitiva e incessante. “Todo lado. O tempo todo.”
Estava lá o penico na minha cabeça. De novo. E de novo e de novo...
E, por todas as vezes eu tento me
livrar do maldito penico. Outras tantas mulheres pretas vão, juntas, buscando
formas de sumir, de vez, com esse penico de nossas cabeças... E aí, no meio da
conversa, a Jô me disse que a faxineira, uma mulher branca, lhe ofereceu um
pote de pasta de limpeza, e um pano sujo, após ela solicitar à ela que limpasse
a parte de cima de seu armário, que estava imunda... “eu não alcanço aí,
quando você puder, você mesma limpa.” Disse ela à Jô entregando-lhe o “material”
de limpeza.
A faxineira branca foi mais sincera e
corajosa do que as outras e outros todos brancos que circulam por nossas vidas
quando acessamos alguns territórios onde antes não existia a presença negra. A
faxineira branca disse, com a lata de pasta e o pano sujo, que ali não é nosso
lugar! Disse o quanto lhe incomoda receber “ordens” de um corpo como o nosso.
Disse o quanto lhe é desconfortável ouvir-nos em nossos espaços de poder e legitimidade. Disse que nossa voz não é pra
ser ouvida. Disse que em determinados territórios nós simplesmente não devemos
existir.
A faxineira branca explicitou, em sua
atitude racista, o que circula nos sentires de todos os outros que se calam,
mas que não suportam que possamos decidir, que possamos não servi-los, que
possamos não fazer do jeito deles, que possamos dizer não, que possamos saber mais,
ser mais bonitas, mais inteligentes, mais engraçadas. Mais, mais, mais. Sempre
intuí que racismo tem muita relação com inveja...
Num episódio de “Todo mundo odeia o
Chris”, quando o protagonista decide parar de estudar, seu antagonista, que
durante as quatro temporadas da série o perseguiu de maneira ostensiva e
agressiva, o convida para um passeio. Espantado com a atitude, Chris pergunta o
motivo, e Joey Caruso responde, em outras palavras, que agora que ele pararia
de estudar, não seria mais uma ameaça, e que seu desejo de subjuga-lo provinha
de uma admiração em relação ao seu potencial, que o mesmo, Caruso, não possuía.
Talvez Chris Rock, o autor/roteirista da séria pense igual à mim...
Invejosos ou não, o fato é que o
racismo os faz não suportarem. Não suportam, mas, a maioria, principalmente nas
instituições, se cala. E, no silêncio, lançam olhares, insinuam, limitam ações,
impedem progressos, criam maledicências para seguirem nos deslegitimando e
enchendo da merda racista deles os penicos que eles mesmos puseram em nossas
cabeças...
“Cambada”! Diria Maria Joana, minha avó. E,
certamente, seria chamada de raivosa, assim como tem branco lendo isso agora e
chamando a mim de “agressiva”.
Se o velho preto, pai da Jô, aqui
estivesse, poderia ver que muito pouca coisa mudou, mas que nós, os pretos e
pretas, estamos avançando. Tão somente por nossa conta. Nós, por nós. E nada
mais. Seguem nos matando, nos ridicularizando, nos enlouquecendo, nos
apartando, nos adoecendo... Porque o certo é que não é diferente para nenhuma de
nós! Maju, Jô, eu, Gilmara e todas as outras. Fartas de penicos sobre nossas cabeças!
Cansadas de toda essa merda racista.
Mas a gente segue! Na bancada do
jornal, nas salas de aula, em outros espaços de poder. Ainda poucas. Quase ausentes...
Mas... Fortalecendo a voz, firmando o corpo e quebrando, nas caras deles, os
malditos penicos.
Na minha cabeça, não! Na cabeça de
todas nós, chega!