terça-feira, 28 de abril de 2020

Os Urubus e a nova lógica da vida


Tenho na cabeça a imagem dos urubus em volta da presa... Nem sei se chama presa nesse caso... Mas, a imagem da minha cabeça é a dos urubus sobrevoando a caça, quando ela ainda nem virou carniça.... Essa imagem não me sai da cabeça quando penso nesse momento que o mundo vive e no modo, costumeiramente irresponsável e nojento, como algumas autoridades lidam com as pessoas... Sem cuidado e sem apreço.


O mundo foi parado por uma pandemia que já matou algumas milhares de pessoas e, nem assim, a gente consegue perceber que há clamores, para além de nosso entendimento, para que outros modos de vida sejam construídos... A sanha do urubu é tão grande que ele ás vezes nem percebe que a cobra tá ali na tocaia para fazer dele uma presa fácil. Os humanos que se comportam como urubus não têm a mesma visão ampla que esses animais possuem, mas, o envolvimento com a carniça é o mesmo.


É uma lógica tão esquisita essa que não distingue em sua pele o próprio risco que corre... Em que pese o FATO de que os pobres compõem o maior numero de óbitos, a doença está aí para todo mundo. E, não se trata apenas de sufocamento do sistema de saúde, embora essa seja uma preocupação extremamente pertinente, mas de uma enfermidade que pode fazer as pessoas morrerem, mesmo quando têm possibilidade de tratamento digno. Tem um recado nisso aí, porque o vírus não “faz” NENHUM tipo de distinção, não há escapatórias a não ser aquelas que compreendem a importância de uma ação coletiva, de uma ação de cuidado de uns com as outras...


Mas não há cuidado que se construa quando a cabeça funciona na mesma sintonia do urubu atrás da carniça, e o horizonte do olhar só alcança o raio do umbigo. O raio do umbigo é tão curto e limitado que é incapaz de compreender as dimensões de interação que existem numa situação tão triste e complicada como essa.


A decisão diante do para onde se posicionar não é simples... Ninguém está dizendo que é... Viver sem dinheiro, com as dívidas batendo na porta não é realidade que alguém sonha, embora um grande número de pessoas já viva assim constantemente nesse país, sem que boa parte dos cidadãos e cidadãs, que encabeçam a movimentação da “vida normal”, se preocupe com elas. Não se trata de dar ou tirar mérito de quem está preocupado com o que vai ser da vida quando tudo isso acabar... E é exatamente aí que o olho curto agarrado no umbigo impede de ir além e perceber com o que de fato estamos lidando.


Não vai acabar. Tão cedo não acaba porque as perspectivas de uma vacina não apontam menos de um ano para sua socialização. Não vamos voltar a viver no mundo que vivíamos em dezembro do ano passado. Acabou. Rompeu. Desconstruiu. E não precisa, como eu, acreditar no que espiritualmente isso quer nos dizer, porque mesmo na visão e percepção materialista não é difícil olhar para o que está acontecendo no mundo e conseguir conceber que estamos diante de algo que refaz todas as estruturas sob as quais estivemos assentadas até hoje.


Repensar deveria ser a oportunidade a agarrarmos com unhas e dentes. Repensar. Não fazer do mesmo jeito. Porque, nesse caso, o fazer do mesmo jeito quer dizer um atentado evidente contra o direito à vida, o direito à respirar... Fazer do mesmo jeito não só prova a cognição limitada, como também escancara o pouco apreço à maior potência que os seres podem experimentar que é a vida...


A vida perde valor diante de um único modo de gerir e prover a sobrevivência... Perde valor quando a coletividade não importa tanto quanto manter ativo os modos individuais como cada um provém suas relações e seu sustento... Perde valor a vida diante da incapacidade de nos abrirmos à outras possibilidades diante do impossível que se apresenta diante de nós quando, na verdade, o impossível, numa situação como essa, só existe quando se desiste do que nos parece não ser possível... É nessa crença que as impossibilidades nascem.


E nascem ancoradas numa profunda identificação com a morte como sistema de vida. Sistema onde não cabe todo mundo, onde o que se produz sob o sol não é direito de todo mundo de igual modo. Essa é, na verdade, a lógica de quem, nesse momento, age como urubu se importando apenas com o que vai comer nas próximas horas... Mesmo quando a ameaça da fome não é uma realidade como o é para tantas famílias, há tanto tempo.


Diante do mundo, e o Brasil não está fora disso, há um sem número de situações a partir das quais podemos refletir e ir gestando outros viveres... Viveres não só na economia, mas também na economia! Viveres nas artes, nas relações, no lazer... No cuidado! Proporcionar relações econômicas que se baseiem no cuidado com a outra, pensar fazeres artísticos que nos movimentem  de outros modos já que a circulação, por um bom tempo, não será a mesma. Buscar interações sociais que nos ensinem outros encontros, outros dizeres, outros estares! Porque o mundo é outro, como então seguiremos sendo as mesmas pessoas?


Há sim uma dose grande de otimismo quando escrevo isso. Essa sou eu. Mas na verdade falo aqui de Lógica. Outra Lógica. Uma nova Lógica que PRECISA nascer, porque outros parâmetros de verdade precisam ser experimentados para que a vida continue a acontecer!


Precisa ser assim. Antes que toda a gente se transforme em carniça. Até mesmo os urubus...