Tenho na cabeça a imagem
dos urubus em volta da presa... Nem sei se chama presa nesse caso... Mas, a
imagem da minha cabeça é a dos urubus sobrevoando a caça, quando ela ainda nem
virou carniça.... Essa imagem não me sai da cabeça quando penso nesse momento que
o mundo vive e no modo, costumeiramente irresponsável e nojento, como algumas autoridades
lidam com as pessoas... Sem cuidado e sem apreço.
O mundo foi parado por
uma pandemia que já matou algumas milhares de pessoas e, nem assim, a gente
consegue perceber que há clamores, para além de nosso entendimento, para que outros
modos de vida sejam construídos... A sanha do urubu é tão grande que ele ás
vezes nem percebe que a cobra tá ali na tocaia para fazer dele uma presa fácil.
Os humanos que se comportam como urubus não têm a mesma visão ampla que esses
animais possuem, mas, o envolvimento com a carniça é o mesmo.
É uma lógica tão esquisita
essa que não distingue em sua pele o próprio risco que corre... Em que pese o FATO
de que os pobres compõem o maior numero de óbitos, a doença está aí para todo
mundo. E, não se trata apenas de sufocamento do sistema de saúde, embora essa
seja uma preocupação extremamente pertinente, mas de uma enfermidade que pode fazer as
pessoas morrerem, mesmo quando têm possibilidade de tratamento digno. Tem um
recado nisso aí, porque o vírus não “faz” NENHUM tipo de distinção, não há
escapatórias a não ser aquelas que compreendem a importância de uma ação
coletiva, de uma ação de cuidado de uns com as outras...
Mas não há cuidado que se
construa quando a cabeça funciona na mesma sintonia do
urubu atrás da carniça, e o horizonte do olhar só alcança o raio do umbigo. O raio do umbigo é tão curto e limitado que é incapaz de compreender as dimensões
de interação que existem numa situação tão triste e complicada como essa.
A decisão diante do para
onde se posicionar não é simples... Ninguém está dizendo que é... Viver sem
dinheiro, com as dívidas batendo na porta não é realidade que alguém sonha, embora
um grande número de pessoas já viva assim constantemente nesse país, sem que boa
parte dos cidadãos e cidadãs, que encabeçam a movimentação da “vida normal”, se
preocupe com elas. Não se trata de dar ou tirar mérito de quem está preocupado
com o que vai ser da vida quando tudo isso acabar... E é exatamente aí que o
olho curto agarrado no umbigo impede de ir além e perceber com o que de fato
estamos lidando.
Não vai acabar. Tão cedo
não acaba porque as perspectivas de uma vacina não apontam menos de um ano para
sua socialização. Não vamos voltar a viver no mundo que vivíamos em dezembro do
ano passado. Acabou. Rompeu. Desconstruiu. E não precisa, como eu, acreditar no
que espiritualmente isso quer nos dizer, porque mesmo na visão e percepção materialista
não é difícil olhar para o que está acontecendo no mundo e conseguir conceber
que estamos diante de algo que refaz todas as estruturas sob as quais estivemos
assentadas até hoje.
Repensar deveria ser a
oportunidade a agarrarmos com unhas e dentes. Repensar. Não fazer do mesmo
jeito. Porque, nesse caso, o fazer do mesmo jeito quer dizer um atentado
evidente contra o direito à vida, o direito à respirar... Fazer do mesmo jeito
não só prova a cognição limitada, como também escancara o pouco apreço à maior
potência que os seres podem experimentar que é a vida...
A vida perde valor diante
de um único modo de gerir e prover a sobrevivência... Perde valor quando a
coletividade não importa tanto quanto manter ativo os modos individuais como
cada um provém suas relações e seu sustento... Perde valor a vida diante da
incapacidade de nos abrirmos à outras possibilidades diante do impossível que
se apresenta diante de nós quando, na verdade, o impossível, numa situação como
essa, só existe quando se desiste do que nos parece não ser possível... É nessa
crença que as impossibilidades nascem.
E nascem ancoradas numa
profunda identificação com a morte como sistema de vida. Sistema onde não cabe
todo mundo, onde o que se produz sob o sol não é direito de todo mundo de igual
modo. Essa é, na verdade, a lógica de quem, nesse momento, age como urubu se
importando apenas com o que vai comer nas próximas horas... Mesmo quando a ameaça da fome não é uma realidade como o é para tantas famílias, há tanto tempo.
Diante do mundo, e o
Brasil não está fora disso, há um sem número de situações a partir das quais
podemos refletir e ir gestando outros viveres... Viveres não só na economia,
mas também na economia! Viveres nas artes, nas relações, no lazer... No
cuidado! Proporcionar relações econômicas que se baseiem no cuidado com a
outra, pensar fazeres artísticos que nos movimentem de outros modos já que a circulação, por um
bom tempo, não será a mesma. Buscar interações sociais que nos ensinem outros
encontros, outros dizeres, outros estares! Porque o mundo é outro, como então
seguiremos sendo as mesmas pessoas?
Há sim uma dose grande de
otimismo quando escrevo isso. Essa sou eu. Mas na verdade falo aqui de Lógica.
Outra Lógica. Uma nova Lógica que PRECISA nascer, porque outros parâmetros de
verdade precisam ser experimentados para que a vida continue a acontecer!
Precisa ser assim. Antes
que toda a gente se transforme em carniça. Até mesmo os urubus...