As datas
comerciais sempre me causaram incômodo. De início, ainda criança, uma espécie
de tristeza embora, na minha família, elas fossem motivo de muita festa, comida
e alegria. Já adulta a consciência de que elas são a ponta nefasta de um sistema
perverso que maltrata, exclui e mata me fizeram rejeitar, em meu cotidiano,
qualquer movimentação em nome dessas comemorações. Procuro, no entanto, não realizar qualquer espécie de “proselitismo” ou doutrinação diante de quem escolhe fazer
parte do jogo, por qualquer motivo que seja. Motivos são motivos e cada uma tem
o seu.
Nesse ano olho
para as datas comerciais focando o olho em quem deseja comemora-las e,
compreendendo, profundamente, o significado disso, ainda que eu saiba que muita
gente não compartilhe esse significado, e apenas entre na roda do afeto que o
consumo estimula, ou vice versa.
São 100.000
pessoas mortas. CEM MIL. Talvez, em nenhum momento de sua história o Brasil tenha
perdido tanta gente em tão pouco espaço de tempo... Um monte de pais, um tanto
de filhos... E aquela mesma roda do consumo que estimula o afeto ou vice versa
nos ensina que isso não é tão importante assim... Aliás, importar-se coloca gente que se importa nas armaduras da chatice, do enjoamento e disso que por aí é chamado, equivocadamente, de loucura.
Não parece ser
importante porque 100 mil pessoas perderam suas vidas e a vida do país vai
retomando à “normalidade”... Que palavra feia! Normalidade. Feia porque dentro
dela cabem um cem número de coisas que são, na verdade, absurdas. Normalidade.
Normal. Normatizar. Cem mil pessoas são colocadas dentro do que talvez seja o
normal desse tempo no Brasil. Cem mil. Naturalmente "matadas" por um vírus e por todo descaso na lida com o que ele representa.
Cem mil pessoas é
muito mais do que a população de diversas cidades brasileiras. Cem mil pessoas
é um contingente muito maior do que é necessário para eleger um vereador, em
vários estados cem mil pessoas elegem um deputado... Cem mil é um número que,
nesse país, parece não ter nenhum significado quando o contexto é esse. De
morte. Morte por situações que, se não evitáveis, ao menos amenizadas... Obrigatoriamente deveriam ser cuidadas de outro modo do que esse que está em vigor.
São 100 mil vidas
recheadas de sonhos, frustrações, experiências. São nomes. Pessoas. Gente que
era amada por outras gentes. Gente que era esperada, festejada, acolhida... Gente...
Essa roda do comércio que estimula o afeto e vice versa nos permite pensar
nisso??? Gente... Gente?
Gente incentivada
a ir para as ruas quando não há nenhuma garantia de que possam estar seguras diante
do risco de morte. Comércio aberto e gente comemorando o acontecido. Gente
andando na rua, gente caminhando na praia, gente fazendo exercício no parque, gente correndo na beira do rio, gente querendo o retorno às aulas, gente amontoada em festinhas e festonas,
gente aglomerada na porta do bar. Gente entrando e saindo. Gente no trem porque
outro jeito não há. Gente no ônibus só pra passear. Gente na feira, gente subindo,
descendo, indo, vindo, voltando... Gente... Gente.
Essa gente que não
entende que a outra também é gente. Gente que despreza a coletividade porque
seu desejo é muito urGENTE. Gente. Gente, que indo e vindo sem necessidade, é o
pé que sapateia na cova de quem também era gente... De quem talvez quisesse
esse dia dos pais da roda do consumo que incentiva o afeto e vice versa. Cem
mil. 100 mil que não resistiram àquilo que foi chamado de “gripezinha” e foi
embora dessa vida deixando, quem sabe, dores, dissoluções, adoecimentos, desestruturações
e vazios...
“E daí?” Disse
aquele que gente não parece ser.
Que gente a gente
é? Quem era aquela gente? Qual gente eu sinto que sou? Eu sinto? Tem sentido tudo
isso? Toda essa gente... Sem vida e que parece também sem importância. Nada
acontece... Nada importa, e eu penso... Cem mil gentes atiradas ao mar
comoveriam essa gente que assiste? Cem mil gentes fuziladas numa parede despertariam
nossa compaixão? Que gente somos diante de toda essa gente? Tem gente dentro da
gente?
Então, eu entendo
a data inventada, o afeto de calendário... Entendo porque muito pouco de sentir
e de oferecer sentimento bom tem ficado por dentro da gente que a gente é. A celebração
da vida demarcada por uma invenção pode, nesse tempo tão vazio de gente, ser
alento para tantas dessa tanta gente...
Cem mil gentes...