domingo, 9 de agosto de 2020

Cem mil Gentes

 

As datas comerciais sempre me causaram incômodo. De início, ainda criança, uma espécie de tristeza embora, na minha família, elas fossem motivo de muita festa, comida e alegria. Já adulta a consciência de que elas são a ponta nefasta de um sistema perverso que maltrata, exclui e mata me fizeram rejeitar, em meu cotidiano, qualquer movimentação em nome dessas comemorações. Procuro, no entanto, não realizar qualquer espécie de “proselitismo” ou doutrinação diante de quem escolhe fazer parte do jogo, por qualquer motivo que seja. Motivos são motivos e cada uma tem o seu.


Nesse ano olho para as datas comerciais focando o olho em quem deseja comemora-las e, compreendendo, profundamente, o significado disso, ainda que eu saiba que muita gente não compartilhe esse significado, e apenas entre na roda do afeto que o consumo estimula, ou vice versa.


São 100.000 pessoas mortas. CEM MIL. Talvez, em nenhum momento de sua história o Brasil tenha perdido tanta gente em tão pouco espaço de tempo... Um monte de pais, um tanto de filhos... E aquela mesma roda do consumo que estimula o afeto ou vice versa nos ensina que isso não é tão importante assim... Aliás, importar-se coloca gente que se importa nas armaduras da chatice, do enjoamento e disso que por aí é chamado, equivocadamente, de loucura.


Não parece ser importante porque 100 mil pessoas perderam suas vidas e a vida do país vai retomando à “normalidade”... Que palavra feia! Normalidade. Feia porque dentro dela cabem um cem número de coisas que são, na verdade, absurdas. Normalidade. Normal. Normatizar. Cem mil pessoas são colocadas dentro do que talvez seja o normal desse tempo no Brasil. Cem mil. Naturalmente "matadas" por um vírus e por todo descaso na lida com o que ele representa.



Cem mil pessoas é muito mais do que a população de diversas cidades brasileiras. Cem mil pessoas é um contingente muito maior do que é necessário para eleger um vereador, em vários estados cem mil pessoas elegem um deputado... Cem mil é um número que, nesse país, parece não ter nenhum significado quando o contexto é esse. De morte. Morte por situações que, se não evitáveis, ao menos amenizadas... Obrigatoriamente deveriam ser cuidadas de outro modo  do que esse que está em vigor.


São 100 mil vidas recheadas de sonhos, frustrações, experiências. São nomes. Pessoas. Gente que era amada por outras gentes. Gente que era esperada, festejada, acolhida... Gente... Essa roda do comércio que estimula o afeto e vice versa nos permite pensar nisso??? Gente... Gente?


Gente incentivada a ir para as ruas quando não há nenhuma garantia de que possam estar seguras diante do risco de morte. Comércio aberto e gente comemorando o acontecido. Gente andando na rua, gente caminhando na praia, gente fazendo exercício no parque, gente correndo na beira do rio, gente querendo o retorno às aulas, gente amontoada em festinhas e festonas, gente aglomerada na porta do bar. Gente entrando e saindo. Gente no trem porque outro jeito não há. Gente no ônibus só pra passear. Gente na feira, gente subindo, descendo, indo, vindo, voltando... Gente... Gente.


Essa gente que não entende que a outra também é gente. Gente que despreza a coletividade porque seu desejo é muito urGENTE. Gente. Gente, que indo e vindo sem necessidade, é o pé que sapateia na cova de quem também era gente... De quem talvez quisesse esse dia dos pais da roda do consumo que incentiva o afeto e vice versa. Cem mil. 100 mil que não resistiram àquilo que foi chamado de “gripezinha” e foi embora dessa vida deixando, quem sabe, dores, dissoluções, adoecimentos, desestruturações e vazios...


“E daí?” Disse aquele que gente não parece ser.


Que gente a gente é? Quem era aquela gente? Qual gente eu sinto que sou? Eu sinto? Tem sentido tudo isso? Toda essa gente... Sem vida e que parece também sem importância. Nada acontece... Nada importa, e eu penso... Cem mil gentes atiradas ao mar comoveriam essa gente que assiste? Cem mil gentes fuziladas numa parede despertariam nossa compaixão? Que gente somos diante de toda essa gente? Tem gente dentro da gente?


Então, eu entendo a data inventada, o afeto de calendário... Entendo porque muito pouco de sentir e de oferecer sentimento bom tem ficado por dentro da gente que a gente é. A celebração da vida demarcada por uma invenção pode, nesse tempo tão vazio de gente, ser alento para tantas dessa tanta gente...


Cem mil gentes...


(Foto: https://noticias.uol.com.br/album/2020/08/08/comercio-popular-atrai-multidao-na-vespera-do-dia-dos-pais-em-sao-paulo.htm?mode=list&foto=1)