domingo, 30 de maio de 2021

Um presente para minha mãe

 

Oi Mãe!

 

Ontem foi seu aniversário! Se aqui estivesse completaria 79 anos, e já teria sido vacinada...

 

Já se vão 14 aniversários sem sua presença nesse nosso mundo tão louco... Invariavelmente, penso no que tu está pensando daí; olhando tudo isso que estamos vivendo, sem mesmo saber se isso é vida...

 

Ontem, daí, tu deve ter tido notícias de que, finalmente, nossa gente se organizou para ir para rua manifestar contra toda essa sorte de desfeitos e maldades desse nosso presidente e sua turma, e eu, de cá, fiquei numa alegria contida pensando que toda aquela movimentação bonita podia ser um presente pro seu aniversário... Um presente para minha mãe!

 

Alegria contida é um sentimento muito recorrente em mim, minha mãe! Aquela alegria de trio elétrico que sempre tive se encabulou no meio desse tempo doído, mas segue insistente no desejo de recriar o que temos tido de possibilidades...

 

Dia desses, tomei a primeira dose da vacina, olha você, mãe! Nós, os super sabidos em campanhas de vacinação, agora ficamos postando foto da hora que vamos vacinar... Porque virou uma conquista tão inusitada e improvável que precisamos registrar e compartilhar, como forma de elaborar uma espécie de salvação diante desse caos...

 

Minha alegria encabulada não me deixou postar foto, porque fiquei com uma sensação muito esquisita de não alívio, não sossego e, na verdade, não alegria... Como se eu estivesse meio anestesiada diante do cenário vergonhoso que vivemos no Brasil... Sei lá, mãe, não consegui... Mas eu estar vacinada, talvez possa ser para você, daí de onde me olhas, um presente de aniversário...

 

E, noutro dia, mexendo numa pasta de nome “Carminha”, encontrei uma foto sua e da Tia Cirene, ao lado do Seu Alanir, na primeira, quem sabe segunda, conferência de saúde aqui da cidade... Quanto tempo isso... E vocês já acreditavam no SUS, quando o SUS nem existia direito ainda... Então, eu tenho um presente de aniversário, mãe!  Que é lhe dizer que, talvez, nesse tumulto de emoções nem tão boas assim, muita gente passou a compreender, ou ao menos considerar, a grandeza do Sistema Único! Muita gente, no momento da vacina, vai carregando uma plaquinha escrito “Viva o SUS”, não sei direito o que isso significa de fato para cada uma, mas, tá falado, anunciado, quase que profetizado e, nesse tempo de desmonte, isso não deixa de ser bom!

 

Ontem pensei como é que a gente teria se arrumado nesses dois anos de pandemia sem fazer uma festança no dia do seu aniversário... Sem gente entrando e saindo de casa o dia inteiro, sem panela no fogo baixo, pra ficar aquecida e atender todo mundo que chegasse, sem gente falando e gargalhando alto...  Sem cerveja e sem a caipirinha do Expedito...

 

Ah Mãe! O Papa chamou a gente de cachaceiro! Não, não, não, mãe! Não a gente aqui de casa! Se referia ao povo brasileiro... Foi estranho...  Mas ó! você adoraria ver Bergóglio virar Papa Francisco...  O discipulado dele tem um “quê” de João XXIII e seu Vaticano II e, certamente, vendo isso você pensaria que grande parte de nossos problemas no Brasil têm vindo de quem não bebe cachaça, não dança funk, que “não é do mundo”  e que se acha escolhido porque opta não se afetar por uma fé encarnada... A fé do nosso homem de Nazaré, não é mesmo, mãe?


Não... Esse não é um papo de presente de aniversário, minha mãe... Então, vou mudar de assunto e dizer que sigo firme e corajosa, que não baixo a cabeça e que sigo com a altivez de quem nasceu alforriada e livre!

 

Dia desses, numa rede social, eu contei aquela história de quando a vó espremeu, na mão, o filhote de escorpião que picou a Tia Cilinha e correu para se esconder no buraco do colchão!!! Vê? Se eu, neta da Maria Joana, que tinha atitudes como essa, vou me intimidar fácil... Vou não! No meu sangue e no meu coração tem a vida de muita mulher porreta que brigou muito, que matou todo tipo de escorpião, cobra é aranha brava, pra chegar aqui. Exatamente aqui onde eu estou e onde outras tantas têm chegado... E, mãe, a boca do racismo tenta engolir a gente de maneira feroz quando passamos a ocupar lugares de poder... Elas se disfarçam, mãe... Mas no final das contas, são as mesmas e velhas bocas dentudas de presas afiadas vociferando contra nossas corpas pretas... 

 

Acho, mãe, que esse é um presente de aniversário... Eu te dizer que a opressão não mudou em nada, mas que nós, aqui, juntas, temos mudado um bom número de coisas... Essas coisas mesmo que você e as suas pegaram pela mão e saíram a anunciar... Mãe, eu sigo desejando e construindo modos de honrar a ti e suas lutas... E, de presente, quero te oferecer na troca de energia que segue nos unindo, toda a coragem e determinação que você e as suas plantaram em mim...

 

E aí, eu escolhi o dia de ontem, seu aniversário, para me reunir com alguns mestres de Folias de Reis aqui de Juiz de Fora... Contei à eles de seu aniversário, ouvi e senti a energia de nosso povo protegido e guiado por nossa ancestralidade tão potente e tão presente!




Encerramos o encontro dedicando uma oração à você e outras mulheres que partiram desse mundo no meio dessa pandemia. Os Santos Reis nos abençoando e derramando força, porque nossa gente sempre precisa ser forte! Uma conexão incrível de sabedoria popular, luta por direitos e compromisso com a vida! Um lindo momento de presente para ti, minha mãe, no dia de seu aniversário! E, em todos os outros dias, um presente para minha mãe, um presente de agradecimento à ti, mãe, por deixares em mim as tintas mais fortes que colorem a mulher que eu sou!

Feliz aniversário, Carminha, minha mãe querida!



domingo, 9 de maio de 2021

Que corpos somos nós?

 

Há por aqui um emaranhado de dores que vão calando um tanto de alaridos que vivem pelo meu dentro... Insisto na alegria que a cada dia é golpeada pelos tufos de tristeza e indignação, e a acalento como se fosse uma criança de colo que precisa ser aninhada e protegida...




A dor que cala os gritos transforma em gritos outras dores... Até quando? O que ocorre em meu corpo e em corpos outros que seguem paralisados diante de tanto... Tanto de tantas formas de violência... Instalada de tal modo que já nem se sabe onde começa a vida ou onde ela termina para a violação entrar, ou, quem sabe, se a vida é mesmo toda essa violência...


O que acontece com nossos corpos que as ruas não invadem numa tentativa desesperada de por fim ao inferno que se vive no Brasil? Quais gritos e dores ainda precisamos viver para que nos lancemos à alguma forma de amor e cuidado que nos livre de tanta experiência de morte?


A vida interrompida de um jovem ator lança diversos corpos a experiência de um vazio repleto de mais de 400 mil vidas... Todas com nomes, histórias, desavenças, (des) amores... 400 mil vidas misturadas em experiências que se encerram num emaranhado de descaso, negligência, deboche, insensibilidade... morte...


Não há mais palco para o jovem ator, os planos se encerraram, os filhos não terão lembranças dele... Não lembrarão da voz, do cheiro, de tudo o que foi sonhado... Quantas 400 mil lembranças mais estão perdidas e ficarão vagando nessa corrente de ausência, dor e desespero...


Meu corpo e corpos outros tentam insistir na dança da alegria, da potência que a vida sempre anuncia e, no meio do movimento de insistir o solavanco de lares invadidos, de tiros por todos os lados, de corpos caindo, de vidas se encerrando... Sabe-se lá quantas... Nessa ciranda de desesperos não há a possibilidade de acreditar naquilo que nos é dito... Quantas vidas mais? Que nome têm? A quem deixaram? Quantos meninos e meninas não lembrarão da voz e do cheiro de quem os trouxe ao mundo?


Dores repaginadas nos corpos que conhecem bem a violência... Corpos pretos... Corpos pobres... Sempre eles. Sem fuzis, com guarda chuvas, sem esperanças,  com sacolas, sem dinheiro,com sonhos, Sem proteção, com famílias... Sempre eles tombando em esquinas, vielas,  UTI’s, onde tombam em maioria junto outras tantas vidas que esperam, agasalhadas no descaso, a cura que já existe.... Umas vidas que importam menos ainda do que outras vidas...  Vidas que, nesse tempo de desespero, na verdade, não importam. Essa é a verdade.


Vidas que são as mais de 400 mil em outras várias 400 mil. Vidas não vistas, não sentidas. Invisíveis apenas. Sem a dor de todo o país, alojada em peitos abafados de agonia... Vidas festejadas, admiradas, famosas, conhecidas... Vidas todas emboladas na tristeza, no medo, na incerteza... Até quando? Vidas indo e vidas ficando mutiladas, desesperançadas enquanto o presidente da república passeia de moto, gargalhando, com a cara ao vento, ao ar, ao respiro que falta no corpo de tantas 400 mil... O próprio inferno.


Não queria escrever esse texto porque meu corpo fica insistindo em ser alegre, mesmo quando a alegria se torna um difícil exercício... Música alta me constrange... Festejos me envergonham... Como segue um povo que se acha na festa quando a festa vira possibilidade de morte? Como sigo insistindo na alegria? O que faço com tanta gritaria aqui por dentro?


O que faz o povo desprezado, assassinado, esquartejado, descartado?

Quantos 400 mil somos nós?

O que querem nossos corpos diante de tanta ameaça à vida que corre neles?

Quero insistir na alegria... akegrar-se em tom de revolução e resistência... Um exercício... Apenas. Muitas penas.


Fonte da imagem: http://www.overmundo.com.br/banco/como-um-grito