Oi Mãe!
Ontem foi seu aniversário! Se
aqui estivesse completaria 79 anos, e já teria sido vacinada...
Já se vão 14 aniversários sem
sua presença nesse nosso mundo tão louco... Invariavelmente, penso no que tu está
pensando daí; olhando tudo isso que estamos vivendo, sem mesmo saber se isso é
vida...
Ontem, daí, tu deve ter tido
notícias de que, finalmente, nossa gente se organizou para ir para rua
manifestar contra toda essa sorte de desfeitos e maldades desse nosso
presidente e sua turma, e eu, de cá, fiquei numa alegria contida pensando que
toda aquela movimentação bonita podia ser um presente pro seu aniversário... Um
presente para minha mãe!
Alegria contida é um
sentimento muito recorrente em mim, minha mãe! Aquela alegria de trio elétrico
que sempre tive se encabulou no meio desse tempo doído, mas segue insistente no
desejo de recriar o que temos tido de possibilidades...
Dia desses, tomei a primeira
dose da vacina, olha você, mãe! Nós, os super sabidos em campanhas de
vacinação, agora ficamos postando foto da hora que vamos vacinar... Porque
virou uma conquista tão inusitada e improvável que precisamos registrar e
compartilhar, como forma de elaborar uma espécie de salvação diante desse
caos...
Minha alegria encabulada não
me deixou postar foto, porque fiquei com uma sensação muito esquisita de não
alívio, não sossego e, na verdade, não alegria... Como se eu estivesse meio
anestesiada diante do cenário vergonhoso que vivemos no Brasil... Sei lá, mãe,
não consegui... Mas eu estar vacinada, talvez possa ser para você, daí de onde
me olhas, um presente de aniversário...
E, noutro dia, mexendo numa
pasta de nome “Carminha”, encontrei uma foto sua e da Tia Cirene, ao lado do
Seu Alanir, na primeira, quem sabe segunda, conferência de saúde aqui da
cidade... Quanto tempo isso... E vocês já acreditavam no SUS, quando o SUS nem
existia direito ainda... Então, eu tenho um presente de aniversário, mãe! Que é lhe dizer que, talvez, nesse tumulto de
emoções nem tão boas assim, muita gente passou a compreender, ou ao menos
considerar, a grandeza do Sistema Único! Muita gente, no momento da vacina, vai
carregando uma plaquinha escrito “Viva o SUS”, não sei direito o que isso
significa de fato para cada uma, mas, tá falado, anunciado, quase que
profetizado e, nesse tempo de desmonte, isso não deixa de ser bom!
Ontem pensei como é que a
gente teria se arrumado nesses dois anos de pandemia sem fazer uma festança no
dia do seu aniversário... Sem gente entrando e saindo de casa o dia inteiro,
sem panela no fogo baixo, pra ficar aquecida e atender todo mundo que chegasse,
sem gente falando e gargalhando alto...
Sem cerveja e sem a caipirinha do Expedito...
Ah Mãe! O Papa chamou a gente
de cachaceiro! Não, não, não, mãe! Não a gente aqui de casa! Se referia ao povo
brasileiro... Foi estranho... Mas ó! você
adoraria ver Bergóglio virar Papa Francisco...
O discipulado dele tem um “quê” de João XXIII e seu Vaticano II e,
certamente, vendo isso você pensaria que grande parte de nossos problemas no
Brasil têm vindo de quem não bebe cachaça, não dança funk, que “não é do mundo” e que se acha escolhido porque opta não se
afetar por uma fé encarnada... A fé do nosso homem de Nazaré, não é mesmo, mãe?
Não... Esse não é um papo de
presente de aniversário, minha mãe... Então, vou mudar de assunto e dizer que
sigo firme e corajosa, que não baixo a cabeça e que sigo com a altivez de quem
nasceu alforriada e livre!
Dia desses, numa rede social,
eu contei aquela história de quando a vó espremeu, na mão, o filhote de
escorpião que picou a Tia Cilinha e correu para se esconder no buraco do
colchão!!! Vê? Se eu, neta da Maria Joana, que tinha atitudes como essa, vou me
intimidar fácil... Vou não! No meu sangue e no meu coração tem a vida de muita
mulher porreta que brigou muito, que matou todo tipo de escorpião, cobra é aranha
brava, pra chegar aqui. Exatamente aqui onde eu estou e onde outras tantas têm
chegado... E, mãe, a boca do racismo tenta engolir a gente de maneira feroz quando passamos a ocupar lugares de poder... Elas se disfarçam, mãe... Mas no final das contas, são as mesmas e velhas bocas dentudas de presas afiadas vociferando contra nossas corpas pretas...
Acho, mãe, que esse é um
presente de aniversário... Eu te dizer que a opressão não mudou em nada, mas
que nós, aqui, juntas, temos mudado um bom número de coisas... Essas coisas
mesmo que você e as suas pegaram pela mão e saíram a anunciar... Mãe, eu sigo
desejando e construindo modos de honrar a ti e suas lutas... E, de presente,
quero te oferecer na troca de energia que segue nos unindo, toda a coragem e
determinação que você e as suas plantaram em mim...
E aí, eu escolhi o dia de
ontem, seu aniversário, para me reunir com alguns mestres de Folias de Reis
aqui de Juiz de Fora... Contei à eles de seu aniversário, ouvi e senti a
energia de nosso povo protegido e guiado por nossa ancestralidade tão potente e
tão presente!
Encerramos o encontro
dedicando uma oração à você e outras mulheres que partiram desse mundo no meio
dessa pandemia. Os Santos Reis nos abençoando e derramando força, porque nossa
gente sempre precisa ser forte! Uma conexão incrível de sabedoria popular, luta
por direitos e compromisso com a vida! Um lindo momento de presente para ti,
minha mãe, no dia de seu aniversário! E, em todos os outros dias, um presente
para minha mãe, um presente de agradecimento à ti, mãe, por deixares em mim as
tintas mais fortes que colorem a mulher que eu sou!
Feliz aniversário, Carminha,
minha mãe querida!