domingo, 30 de maio de 2021

Um presente para minha mãe

 

Oi Mãe!

 

Ontem foi seu aniversário! Se aqui estivesse completaria 79 anos, e já teria sido vacinada...

 

Já se vão 14 aniversários sem sua presença nesse nosso mundo tão louco... Invariavelmente, penso no que tu está pensando daí; olhando tudo isso que estamos vivendo, sem mesmo saber se isso é vida...

 

Ontem, daí, tu deve ter tido notícias de que, finalmente, nossa gente se organizou para ir para rua manifestar contra toda essa sorte de desfeitos e maldades desse nosso presidente e sua turma, e eu, de cá, fiquei numa alegria contida pensando que toda aquela movimentação bonita podia ser um presente pro seu aniversário... Um presente para minha mãe!

 

Alegria contida é um sentimento muito recorrente em mim, minha mãe! Aquela alegria de trio elétrico que sempre tive se encabulou no meio desse tempo doído, mas segue insistente no desejo de recriar o que temos tido de possibilidades...

 

Dia desses, tomei a primeira dose da vacina, olha você, mãe! Nós, os super sabidos em campanhas de vacinação, agora ficamos postando foto da hora que vamos vacinar... Porque virou uma conquista tão inusitada e improvável que precisamos registrar e compartilhar, como forma de elaborar uma espécie de salvação diante desse caos...

 

Minha alegria encabulada não me deixou postar foto, porque fiquei com uma sensação muito esquisita de não alívio, não sossego e, na verdade, não alegria... Como se eu estivesse meio anestesiada diante do cenário vergonhoso que vivemos no Brasil... Sei lá, mãe, não consegui... Mas eu estar vacinada, talvez possa ser para você, daí de onde me olhas, um presente de aniversário...

 

E, noutro dia, mexendo numa pasta de nome “Carminha”, encontrei uma foto sua e da Tia Cirene, ao lado do Seu Alanir, na primeira, quem sabe segunda, conferência de saúde aqui da cidade... Quanto tempo isso... E vocês já acreditavam no SUS, quando o SUS nem existia direito ainda... Então, eu tenho um presente de aniversário, mãe!  Que é lhe dizer que, talvez, nesse tumulto de emoções nem tão boas assim, muita gente passou a compreender, ou ao menos considerar, a grandeza do Sistema Único! Muita gente, no momento da vacina, vai carregando uma plaquinha escrito “Viva o SUS”, não sei direito o que isso significa de fato para cada uma, mas, tá falado, anunciado, quase que profetizado e, nesse tempo de desmonte, isso não deixa de ser bom!

 

Ontem pensei como é que a gente teria se arrumado nesses dois anos de pandemia sem fazer uma festança no dia do seu aniversário... Sem gente entrando e saindo de casa o dia inteiro, sem panela no fogo baixo, pra ficar aquecida e atender todo mundo que chegasse, sem gente falando e gargalhando alto...  Sem cerveja e sem a caipirinha do Expedito...

 

Ah Mãe! O Papa chamou a gente de cachaceiro! Não, não, não, mãe! Não a gente aqui de casa! Se referia ao povo brasileiro... Foi estranho...  Mas ó! você adoraria ver Bergóglio virar Papa Francisco...  O discipulado dele tem um “quê” de João XXIII e seu Vaticano II e, certamente, vendo isso você pensaria que grande parte de nossos problemas no Brasil têm vindo de quem não bebe cachaça, não dança funk, que “não é do mundo”  e que se acha escolhido porque opta não se afetar por uma fé encarnada... A fé do nosso homem de Nazaré, não é mesmo, mãe?


Não... Esse não é um papo de presente de aniversário, minha mãe... Então, vou mudar de assunto e dizer que sigo firme e corajosa, que não baixo a cabeça e que sigo com a altivez de quem nasceu alforriada e livre!

 

Dia desses, numa rede social, eu contei aquela história de quando a vó espremeu, na mão, o filhote de escorpião que picou a Tia Cilinha e correu para se esconder no buraco do colchão!!! Vê? Se eu, neta da Maria Joana, que tinha atitudes como essa, vou me intimidar fácil... Vou não! No meu sangue e no meu coração tem a vida de muita mulher porreta que brigou muito, que matou todo tipo de escorpião, cobra é aranha brava, pra chegar aqui. Exatamente aqui onde eu estou e onde outras tantas têm chegado... E, mãe, a boca do racismo tenta engolir a gente de maneira feroz quando passamos a ocupar lugares de poder... Elas se disfarçam, mãe... Mas no final das contas, são as mesmas e velhas bocas dentudas de presas afiadas vociferando contra nossas corpas pretas... 

 

Acho, mãe, que esse é um presente de aniversário... Eu te dizer que a opressão não mudou em nada, mas que nós, aqui, juntas, temos mudado um bom número de coisas... Essas coisas mesmo que você e as suas pegaram pela mão e saíram a anunciar... Mãe, eu sigo desejando e construindo modos de honrar a ti e suas lutas... E, de presente, quero te oferecer na troca de energia que segue nos unindo, toda a coragem e determinação que você e as suas plantaram em mim...

 

E aí, eu escolhi o dia de ontem, seu aniversário, para me reunir com alguns mestres de Folias de Reis aqui de Juiz de Fora... Contei à eles de seu aniversário, ouvi e senti a energia de nosso povo protegido e guiado por nossa ancestralidade tão potente e tão presente!




Encerramos o encontro dedicando uma oração à você e outras mulheres que partiram desse mundo no meio dessa pandemia. Os Santos Reis nos abençoando e derramando força, porque nossa gente sempre precisa ser forte! Uma conexão incrível de sabedoria popular, luta por direitos e compromisso com a vida! Um lindo momento de presente para ti, minha mãe, no dia de seu aniversário! E, em todos os outros dias, um presente para minha mãe, um presente de agradecimento à ti, mãe, por deixares em mim as tintas mais fortes que colorem a mulher que eu sou!

Feliz aniversário, Carminha, minha mãe querida!



domingo, 9 de maio de 2021

Que corpos somos nós?

 

Há por aqui um emaranhado de dores que vão calando um tanto de alaridos que vivem pelo meu dentro... Insisto na alegria que a cada dia é golpeada pelos tufos de tristeza e indignação, e a acalento como se fosse uma criança de colo que precisa ser aninhada e protegida...




A dor que cala os gritos transforma em gritos outras dores... Até quando? O que ocorre em meu corpo e em corpos outros que seguem paralisados diante de tanto... Tanto de tantas formas de violência... Instalada de tal modo que já nem se sabe onde começa a vida ou onde ela termina para a violação entrar, ou, quem sabe, se a vida é mesmo toda essa violência...


O que acontece com nossos corpos que as ruas não invadem numa tentativa desesperada de por fim ao inferno que se vive no Brasil? Quais gritos e dores ainda precisamos viver para que nos lancemos à alguma forma de amor e cuidado que nos livre de tanta experiência de morte?


A vida interrompida de um jovem ator lança diversos corpos a experiência de um vazio repleto de mais de 400 mil vidas... Todas com nomes, histórias, desavenças, (des) amores... 400 mil vidas misturadas em experiências que se encerram num emaranhado de descaso, negligência, deboche, insensibilidade... morte...


Não há mais palco para o jovem ator, os planos se encerraram, os filhos não terão lembranças dele... Não lembrarão da voz, do cheiro, de tudo o que foi sonhado... Quantas 400 mil lembranças mais estão perdidas e ficarão vagando nessa corrente de ausência, dor e desespero...


Meu corpo e corpos outros tentam insistir na dança da alegria, da potência que a vida sempre anuncia e, no meio do movimento de insistir o solavanco de lares invadidos, de tiros por todos os lados, de corpos caindo, de vidas se encerrando... Sabe-se lá quantas... Nessa ciranda de desesperos não há a possibilidade de acreditar naquilo que nos é dito... Quantas vidas mais? Que nome têm? A quem deixaram? Quantos meninos e meninas não lembrarão da voz e do cheiro de quem os trouxe ao mundo?


Dores repaginadas nos corpos que conhecem bem a violência... Corpos pretos... Corpos pobres... Sempre eles. Sem fuzis, com guarda chuvas, sem esperanças,  com sacolas, sem dinheiro,com sonhos, Sem proteção, com famílias... Sempre eles tombando em esquinas, vielas,  UTI’s, onde tombam em maioria junto outras tantas vidas que esperam, agasalhadas no descaso, a cura que já existe.... Umas vidas que importam menos ainda do que outras vidas...  Vidas que, nesse tempo de desespero, na verdade, não importam. Essa é a verdade.


Vidas que são as mais de 400 mil em outras várias 400 mil. Vidas não vistas, não sentidas. Invisíveis apenas. Sem a dor de todo o país, alojada em peitos abafados de agonia... Vidas festejadas, admiradas, famosas, conhecidas... Vidas todas emboladas na tristeza, no medo, na incerteza... Até quando? Vidas indo e vidas ficando mutiladas, desesperançadas enquanto o presidente da república passeia de moto, gargalhando, com a cara ao vento, ao ar, ao respiro que falta no corpo de tantas 400 mil... O próprio inferno.


Não queria escrever esse texto porque meu corpo fica insistindo em ser alegre, mesmo quando a alegria se torna um difícil exercício... Música alta me constrange... Festejos me envergonham... Como segue um povo que se acha na festa quando a festa vira possibilidade de morte? Como sigo insistindo na alegria? O que faço com tanta gritaria aqui por dentro?


O que faz o povo desprezado, assassinado, esquartejado, descartado?

Quantos 400 mil somos nós?

O que querem nossos corpos diante de tanta ameaça à vida que corre neles?

Quero insistir na alegria... akegrar-se em tom de revolução e resistência... Um exercício... Apenas. Muitas penas.


Fonte da imagem: http://www.overmundo.com.br/banco/como-um-grito 



domingo, 9 de agosto de 2020

Cem mil Gentes

 

As datas comerciais sempre me causaram incômodo. De início, ainda criança, uma espécie de tristeza embora, na minha família, elas fossem motivo de muita festa, comida e alegria. Já adulta a consciência de que elas são a ponta nefasta de um sistema perverso que maltrata, exclui e mata me fizeram rejeitar, em meu cotidiano, qualquer movimentação em nome dessas comemorações. Procuro, no entanto, não realizar qualquer espécie de “proselitismo” ou doutrinação diante de quem escolhe fazer parte do jogo, por qualquer motivo que seja. Motivos são motivos e cada uma tem o seu.


Nesse ano olho para as datas comerciais focando o olho em quem deseja comemora-las e, compreendendo, profundamente, o significado disso, ainda que eu saiba que muita gente não compartilhe esse significado, e apenas entre na roda do afeto que o consumo estimula, ou vice versa.


São 100.000 pessoas mortas. CEM MIL. Talvez, em nenhum momento de sua história o Brasil tenha perdido tanta gente em tão pouco espaço de tempo... Um monte de pais, um tanto de filhos... E aquela mesma roda do consumo que estimula o afeto ou vice versa nos ensina que isso não é tão importante assim... Aliás, importar-se coloca gente que se importa nas armaduras da chatice, do enjoamento e disso que por aí é chamado, equivocadamente, de loucura.


Não parece ser importante porque 100 mil pessoas perderam suas vidas e a vida do país vai retomando à “normalidade”... Que palavra feia! Normalidade. Feia porque dentro dela cabem um cem número de coisas que são, na verdade, absurdas. Normalidade. Normal. Normatizar. Cem mil pessoas são colocadas dentro do que talvez seja o normal desse tempo no Brasil. Cem mil. Naturalmente "matadas" por um vírus e por todo descaso na lida com o que ele representa.



Cem mil pessoas é muito mais do que a população de diversas cidades brasileiras. Cem mil pessoas é um contingente muito maior do que é necessário para eleger um vereador, em vários estados cem mil pessoas elegem um deputado... Cem mil é um número que, nesse país, parece não ter nenhum significado quando o contexto é esse. De morte. Morte por situações que, se não evitáveis, ao menos amenizadas... Obrigatoriamente deveriam ser cuidadas de outro modo  do que esse que está em vigor.


São 100 mil vidas recheadas de sonhos, frustrações, experiências. São nomes. Pessoas. Gente que era amada por outras gentes. Gente que era esperada, festejada, acolhida... Gente... Essa roda do comércio que estimula o afeto e vice versa nos permite pensar nisso??? Gente... Gente?


Gente incentivada a ir para as ruas quando não há nenhuma garantia de que possam estar seguras diante do risco de morte. Comércio aberto e gente comemorando o acontecido. Gente andando na rua, gente caminhando na praia, gente fazendo exercício no parque, gente correndo na beira do rio, gente querendo o retorno às aulas, gente amontoada em festinhas e festonas, gente aglomerada na porta do bar. Gente entrando e saindo. Gente no trem porque outro jeito não há. Gente no ônibus só pra passear. Gente na feira, gente subindo, descendo, indo, vindo, voltando... Gente... Gente.


Essa gente que não entende que a outra também é gente. Gente que despreza a coletividade porque seu desejo é muito urGENTE. Gente. Gente, que indo e vindo sem necessidade, é o pé que sapateia na cova de quem também era gente... De quem talvez quisesse esse dia dos pais da roda do consumo que incentiva o afeto e vice versa. Cem mil. 100 mil que não resistiram àquilo que foi chamado de “gripezinha” e foi embora dessa vida deixando, quem sabe, dores, dissoluções, adoecimentos, desestruturações e vazios...


“E daí?” Disse aquele que gente não parece ser.


Que gente a gente é? Quem era aquela gente? Qual gente eu sinto que sou? Eu sinto? Tem sentido tudo isso? Toda essa gente... Sem vida e que parece também sem importância. Nada acontece... Nada importa, e eu penso... Cem mil gentes atiradas ao mar comoveriam essa gente que assiste? Cem mil gentes fuziladas numa parede despertariam nossa compaixão? Que gente somos diante de toda essa gente? Tem gente dentro da gente?


Então, eu entendo a data inventada, o afeto de calendário... Entendo porque muito pouco de sentir e de oferecer sentimento bom tem ficado por dentro da gente que a gente é. A celebração da vida demarcada por uma invenção pode, nesse tempo tão vazio de gente, ser alento para tantas dessa tanta gente...


Cem mil gentes...


(Foto: https://noticias.uol.com.br/album/2020/08/08/comercio-popular-atrai-multidao-na-vespera-do-dia-dos-pais-em-sao-paulo.htm?mode=list&foto=1)

terça-feira, 28 de abril de 2020

Os Urubus e a nova lógica da vida


Tenho na cabeça a imagem dos urubus em volta da presa... Nem sei se chama presa nesse caso... Mas, a imagem da minha cabeça é a dos urubus sobrevoando a caça, quando ela ainda nem virou carniça.... Essa imagem não me sai da cabeça quando penso nesse momento que o mundo vive e no modo, costumeiramente irresponsável e nojento, como algumas autoridades lidam com as pessoas... Sem cuidado e sem apreço.


O mundo foi parado por uma pandemia que já matou algumas milhares de pessoas e, nem assim, a gente consegue perceber que há clamores, para além de nosso entendimento, para que outros modos de vida sejam construídos... A sanha do urubu é tão grande que ele ás vezes nem percebe que a cobra tá ali na tocaia para fazer dele uma presa fácil. Os humanos que se comportam como urubus não têm a mesma visão ampla que esses animais possuem, mas, o envolvimento com a carniça é o mesmo.


É uma lógica tão esquisita essa que não distingue em sua pele o próprio risco que corre... Em que pese o FATO de que os pobres compõem o maior numero de óbitos, a doença está aí para todo mundo. E, não se trata apenas de sufocamento do sistema de saúde, embora essa seja uma preocupação extremamente pertinente, mas de uma enfermidade que pode fazer as pessoas morrerem, mesmo quando têm possibilidade de tratamento digno. Tem um recado nisso aí, porque o vírus não “faz” NENHUM tipo de distinção, não há escapatórias a não ser aquelas que compreendem a importância de uma ação coletiva, de uma ação de cuidado de uns com as outras...


Mas não há cuidado que se construa quando a cabeça funciona na mesma sintonia do urubu atrás da carniça, e o horizonte do olhar só alcança o raio do umbigo. O raio do umbigo é tão curto e limitado que é incapaz de compreender as dimensões de interação que existem numa situação tão triste e complicada como essa.


A decisão diante do para onde se posicionar não é simples... Ninguém está dizendo que é... Viver sem dinheiro, com as dívidas batendo na porta não é realidade que alguém sonha, embora um grande número de pessoas já viva assim constantemente nesse país, sem que boa parte dos cidadãos e cidadãs, que encabeçam a movimentação da “vida normal”, se preocupe com elas. Não se trata de dar ou tirar mérito de quem está preocupado com o que vai ser da vida quando tudo isso acabar... E é exatamente aí que o olho curto agarrado no umbigo impede de ir além e perceber com o que de fato estamos lidando.


Não vai acabar. Tão cedo não acaba porque as perspectivas de uma vacina não apontam menos de um ano para sua socialização. Não vamos voltar a viver no mundo que vivíamos em dezembro do ano passado. Acabou. Rompeu. Desconstruiu. E não precisa, como eu, acreditar no que espiritualmente isso quer nos dizer, porque mesmo na visão e percepção materialista não é difícil olhar para o que está acontecendo no mundo e conseguir conceber que estamos diante de algo que refaz todas as estruturas sob as quais estivemos assentadas até hoje.


Repensar deveria ser a oportunidade a agarrarmos com unhas e dentes. Repensar. Não fazer do mesmo jeito. Porque, nesse caso, o fazer do mesmo jeito quer dizer um atentado evidente contra o direito à vida, o direito à respirar... Fazer do mesmo jeito não só prova a cognição limitada, como também escancara o pouco apreço à maior potência que os seres podem experimentar que é a vida...


A vida perde valor diante de um único modo de gerir e prover a sobrevivência... Perde valor quando a coletividade não importa tanto quanto manter ativo os modos individuais como cada um provém suas relações e seu sustento... Perde valor a vida diante da incapacidade de nos abrirmos à outras possibilidades diante do impossível que se apresenta diante de nós quando, na verdade, o impossível, numa situação como essa, só existe quando se desiste do que nos parece não ser possível... É nessa crença que as impossibilidades nascem.


E nascem ancoradas numa profunda identificação com a morte como sistema de vida. Sistema onde não cabe todo mundo, onde o que se produz sob o sol não é direito de todo mundo de igual modo. Essa é, na verdade, a lógica de quem, nesse momento, age como urubu se importando apenas com o que vai comer nas próximas horas... Mesmo quando a ameaça da fome não é uma realidade como o é para tantas famílias, há tanto tempo.


Diante do mundo, e o Brasil não está fora disso, há um sem número de situações a partir das quais podemos refletir e ir gestando outros viveres... Viveres não só na economia, mas também na economia! Viveres nas artes, nas relações, no lazer... No cuidado! Proporcionar relações econômicas que se baseiem no cuidado com a outra, pensar fazeres artísticos que nos movimentem  de outros modos já que a circulação, por um bom tempo, não será a mesma. Buscar interações sociais que nos ensinem outros encontros, outros dizeres, outros estares! Porque o mundo é outro, como então seguiremos sendo as mesmas pessoas?


Há sim uma dose grande de otimismo quando escrevo isso. Essa sou eu. Mas na verdade falo aqui de Lógica. Outra Lógica. Uma nova Lógica que PRECISA nascer, porque outros parâmetros de verdade precisam ser experimentados para que a vida continue a acontecer!


Precisa ser assim. Antes que toda a gente se transforme em carniça. Até mesmo os urubus...




segunda-feira, 21 de outubro de 2019

A Maju, a Jô, eu, a Gilmara e os penicos




Quando se separou do marido, há anos atrás, o pai da Jô disse à ela, que ela deveria tomar cuidado, porque mulher negra, e ainda separada, era penico que qualquer cachorro mija...


Me vi com um penico na cabeça. Ali, bem posicionado recebendo todo tipo de merda e excremento produzido pelas práticas racistas. Cada vez mais cotidianas e cada vez mais se esmerando em serem sutis e enormemente violentas.


O velho homem preto dizia à Jô sobre a sua experiência. Talvez sobre a convivência com mãe, avós, tias, primas, irmãs ... Mulheres negras não têm garantida a sua dignidade. Não importa o tempo histórico. O preto velho não disse, porque talvez não soubesse, mas o estado civil não traz diferenciações para a experiência de deslegitimação que o racismo ensina. À todas é destinado o mesmo penico de merda assentado na cabeça. Na existência. Não há homem ou situação conjugal nessa vida que interrompa, suspenda ou amenize a experiência de ser mulher negra. Todas nós carregamos o tal penico. Por “todo lado. O tempo todo.”


Dias atrás vi o penico na cabeça da Maju Coutinho. Jornalista, âncora de um importante telejornal, que teve contabilizado seus erros durante a exibição do programa. Isso porque a régua do racismo é cruel, dura, apertada e implacável. Não tem frações ou números mistos. Só números inteiros que por vezes, a maioria das vezes, escapam ao olhar e ao sentimento de quem não está naquele corpo. Ser mulher negra, só mulher negra entende.


O racismo e a branquitude (são diferentes?) entendem que uma mulher preta num espaço de poder ou de visibilidade tem que ser medida, avaliada, escrutinada, questionada, mensurada para, enfim, ser desmerecida e deslegitimada. A deslegitimação racista ocorre para que nenhuma de nós, pretas, esqueçamos qual é, para eles, o nosso lugar. O de origem, o verdadeiro, aquele de onde não deveríamos ter saído. Aquele da colônia, da servidão, da obediência. Desejam, sobretudo, cordialidade, silêncio e mansidão. Para o racismo a bancada de um telejornal não é o lugar da Maju...


E mal descansei os olhos e a alma, já avistei o penico de novo. Dessa vez, na cabeça da Gilmara, que no exercício de sua atividade profissional foi questionada por uma aluna sobre determinada conduta na correção de uma prova. Questionar não é problema. Nunca deve ser! Nesse caso, o penico recebeu excrementos do racismo, quando a aluna comparou Gilmara à um professor. Homem e branco. Ele sim, segundo essa pessoa, legitimado em seu lugar de poder como professor. Ela? Ela só mais uma preta no lugar errado, que para ser lembrada desse “erro”, que a possibilidade do acesso proporciona, precisa ser deslegitimada de seu lugar de poder e conhecimento. “Mas foi o professor fulano quem disse”. Se ele disse é para estar certo. Se um homem branco disse o assunto está encerrado. Ele sabe. Ele pensa. Ele é o dono do conhecimento. É assim que o racismo ensina. Uma mulher preta é só uma intrusa, mal quista, que não deve abrir a boca, me dirá então, demonstrar algum tipo de conhecimento e de apropriação desse conhecimento. “Cala a boca, negra”, é o que diriam, se pudessem.


Talvez se dissessem o “jogo” seria mais justo, porque além de não ter esse monte de aborrecimentos, não teríamos também a pecha de loucas que vêm coisas onde não tem. Num episódio da série Scandal, de Shonda Rhimes, cuja protagonista, Olívia Pope, é uma mulher preta, tal como Shonda, um dos personagens responde à uma entrevista coletiva. Nela, uma jornalista faz uma insinuação sobre a ausência de Olívia naquele momento, fazendo uma referência ao modo como a personagem sempre tem algo a dizer sobre qualquer coisa. Enfurecido, o personagem que responde às perguntas da coletiva, fala sobre a “síndrome do cachorro louco”, e a descreve apontando o jeito como os brancos lançam determinadas afirmações sobre as pessoas/corpos negras como se fossem afirmativas inocentes, e que só são facilmente identificadas por quem é a vítima do ato racista, que passa a ser, invariavelmente, identificada como louca. Afinal, ninguém mais percebe o que DE FATO está acontecendo ali. Esse é um estratagema bastante sofisticado e muito utilizado na atualidade.


O lugar da louca é habitual às mulheres pretas. Também ocupamos, na fala racista, o lugar da barraqueira, da difícil, da rancorosa, da ressentida, da arrogante. Todo lugar é criado para que o ocupemos e deixemos livres os espaços de poder onde não deve caber nossos corpos. Se corpos dóceis e obedientes, vá lá! Mas as pretas que ousam reivindicarem-se como tal e/ou que questionam determinadas posturas em relação à suas existências... Não pode!!! O racismo que alimenta a branquitude (e vice versa?) logo grita que é preciso deslegitimar. Silenciar. Tirar da cena.


E as formas de deslegitimação vão se alternando entre as velhas nossas conhecidas e outras que vão trocando as roupagens para dificultar sua identificação, e confundir quem é cotidianamente vítima do racismo. Dia desses, uma pessoa muito querida, no meio de uma conversa me disse que ali, naquele espaço onde estávamos, as pessoas tinham medo de falar comigo...


 Cri... Cri... Cri...


Fiquei eu cá pensando sobre o medo branco... Célia Maria de Azeredo o identificou em seu clássico “Onda negra, medo branco”, onde fala sobre o negro no imaginário da elite brasileira do século XIX. E não ficou lá. Tá aqui. Vivo e ávido o tal do medo branco.


Que coisa curiosa, não é mesmo? Não tenho interesse NENHUM, de à essas alturas da partida ficar didatizando e pedagogizando branco, sem que me paguem pra isso. Chega! E chega até para aqueles por quem tenho afeto.  Não dá mais para ficar parada nesse ponto quando há inúmeras possibilidades de enfrentar, de fato, de maneira mais comprometida, o racismo e seus estratagemas. Já passou da hora de branco aprender, por conta própria, que É SIM, responsável pela manutenção e persistência do racismo. Ainda mais responsável pelo modo como esse racismo parece cada vez mais fortalecido. Se nós nos temos com o legado da senzala, se ajeitem, brancos, com a herança da casa grande! E APRENDA: Do mesmo modo que você diz sobre meu corpo, o seu corpo TAMBÉM é um discurso. Vire-se com isso! Suas ações são, sim, TODAS demarcadas por sua pele branca! E isso é problema SEU.


 Mas, o fato é que, naquela situação, fiquei pensando neles, e no medo que disseram que eles têm de mim naquele lugar... Será que pensam que ao se aproximarem eu vou morder a cara deles? Pular em seus pescoços? Roubar-lhes alguma coisa? Cuspir-lhes as caras? Unhar-lhes o corpo? Ou será que temem algum feitiço que eu possa disparar à eles?


O medo branco é que é o problema. A branquitude racista (tem diferença?) é que é o problema, e não eu com minha personalidade, meus modos e jeitos de estar na vida. O medo branco, motivado pelo racismo é que deslegitima ao desumanizar... Ter medo de mim é desumanizar-me. E a experiência da desumanização é muito comum à qualquer pessoa preta. Às mulheres negras é comum, cotidiana, repetitiva e incessante. “Todo lado. O tempo todo.” Estava lá o penico na minha cabeça. De novo. E de novo e de novo...


E, por todas as vezes eu tento me livrar do maldito penico. Outras tantas mulheres pretas vão, juntas, buscando formas de sumir, de vez, com esse penico de nossas cabeças... E aí, no meio da conversa, a Jô me disse que a faxineira, uma mulher branca, lhe ofereceu um pote de pasta de limpeza, e um pano sujo, após ela solicitar à ela que limpasse a parte de cima de seu armário, que estava imunda... “eu não alcanço aí, quando você puder, você mesma limpa.” Disse ela à Jô entregando-lhe o “material” de limpeza.


A faxineira branca foi mais sincera e corajosa do que as outras e outros todos brancos que circulam por nossas vidas quando acessamos alguns territórios onde antes não existia a presença negra. A faxineira branca disse, com a lata de pasta e o pano sujo, que ali não é nosso lugar! Disse o quanto lhe incomoda receber “ordens” de um corpo como o nosso. Disse o quanto lhe é desconfortável ouvir-nos em nossos espaços de poder  e legitimidade. Disse que nossa voz não é pra ser ouvida. Disse que em determinados territórios nós simplesmente não devemos existir.


A faxineira branca explicitou, em sua atitude racista, o que circula nos sentires de todos os outros que se calam, mas que não suportam que possamos decidir, que possamos não servi-los, que possamos não fazer do jeito deles, que possamos dizer não, que possamos saber mais, ser mais bonitas, mais inteligentes, mais engraçadas. Mais, mais, mais. Sempre intuí que racismo tem muita relação com inveja...


Num episódio de “Todo mundo odeia o Chris”, quando o protagonista decide parar de estudar, seu antagonista, que durante as quatro temporadas da série o perseguiu de maneira ostensiva e agressiva, o convida para um passeio. Espantado com a atitude, Chris pergunta o motivo, e Joey Caruso responde, em outras palavras, que agora que ele pararia de estudar, não seria mais uma ameaça, e que seu desejo de subjuga-lo provinha de uma admiração em relação ao seu potencial, que o mesmo, Caruso, não possuía. Talvez Chris Rock, o autor/roteirista da séria pense igual à mim...  


Invejosos ou não, o fato é que o racismo os faz não suportarem. Não suportam, mas, a maioria, principalmente nas instituições, se cala. E, no silêncio, lançam olhares, insinuam, limitam ações, impedem progressos, criam maledicências para seguirem nos deslegitimando e enchendo da merda racista deles os penicos que eles mesmos puseram em nossas cabeças...


“Cambada”! Diria Maria Joana, minha avó. E, certamente, seria chamada de raivosa, assim como tem branco lendo isso agora e chamando a mim de “agressiva”.


Se o velho preto, pai da Jô, aqui estivesse, poderia ver que muito pouca coisa mudou, mas que nós, os pretos e pretas, estamos avançando. Tão somente por nossa conta. Nós, por nós. E nada mais. Seguem nos matando, nos ridicularizando, nos enlouquecendo, nos apartando, nos adoecendo... Porque o certo é que não é diferente para nenhuma de nós! Maju, Jô, eu, Gilmara e todas as outras. Fartas de penicos sobre nossas cabeças! Cansadas de toda essa merda racista.


Mas a gente segue! Na bancada do jornal, nas salas de aula, em outros espaços de poder. Ainda poucas. Quase ausentes... Mas... Fortalecendo a voz, firmando o corpo e quebrando, nas caras deles, os malditos penicos.


Na minha cabeça, não! Na cabeça de todas nós, chega!

domingo, 6 de outubro de 2019

Com-Fraternizar e o que aprendi com o Tiago




Aproxima-se o mês de novembro, o mês que não sendo o derradeiro do ano é o que anuncia que, sim, o ano vai acabar! Um ciclo vai se encerrar como se fosse a última chance de providenciarmos um jeito de dar conta de todas as querelas do ano ainda em curso... E, nesse movimento de tentativa de correr contra o tempo, vem junto, de um monte de jeito diferente, as confraternizações.


Confraterniza-se na família, no grupo de amigos que estudaram juntos, com as vizinhas, com o pessoal da academia. Todo mundo que passa o ano junto começa, em novembro (alguns até antes). a programar as festas de confraternização. Não se sabe ao certo o que motiva cada um desses encontros comemorativos, mas eles acontecem, e se tornaram quase que uma obrigação ritualística pouco preenchida de significados.


E por falar em significados cá eu penso no de onde vem a palavra confraternizar e, vasculhando vivências e dicionários posso dizer que a palavra tem relação íntima com convívio fraterno. Dentre as definições originárias do latim, mesma raiz da língua portuguesa (ou seria língua brasileira?), vê-se que a palavra confraternizar , oriunda de conFRATERNItas, traz misturada em si a ideia de fraternidade, o que então nos leva a conceber que, em  sua formação léxica podemos defini-la como um encontro entre pessoas que convivem de maneira fraternal. Ao pé da letra, confraternizar significa, de acordo com vários dicionários disponíveis na internet, “conviver fraternalmente, tratar como irmão” e ainda, “comungar com os pontos de vista, as convicções, ou estado de espírito de alguém”.


Aí não tem jeito! Me vem uma gargalhada bem gorda quando penso em alguns grupos que, aberta a temporada de “fim de ano”, começam a se organizar para, juntos, celebrarem o ano que se encerra... Que cena triste sou capaz de visualizar...


O significado se esvazia diante do significante. O ciclo aproxima-se do fim e, nem mesmo a ideia de ciclo é compreendida pela maioria das pessoas que, por obrigação, se juntam em torno de uma festa com motivações natalinas. Aí então é que tudo piora... O natal, festa que deveria ter motivação sagrada para algumas pessoas, é usado, vivido e compartilhado apenas como dita a economia de mercado capitalista. Comer e comprar. Não importam muito os sentimentos envolvidos, não importa, sequer, a compreensão do momento como algo que, para algumas pessoas que professam determinada fé, é carregado de simbologias que envolvem, DE FATO, a fraternidade, o companheirismo e a comunhão.


Nada disso! No “script” das confraternizações de final de ano não está anotado NENHUM tipo de referência ao modo como foi vivido o ciclo que se encerra. Não importa. Importa é se juntar, gastar dinheiro, comer de maneira farta e só! Tão SÓmente SÓ. Em algumas dessas comemorações a sensação mais evidente que tenho/tinha é essa, uma solidão distribuída em várias performances solitárias e pouco carregadas dos sentimentos que remetem à fraternidade, à comunhão, à celebração da memória do ciclo que se encerra.


Viver os ciclos e ter a consciência deles é importantíssimo quando pensamos na caminhada dos grupos e da humanidade de forma geral. Ainda mais importante é compartilhar os ciclos também na perspectiva de compreender o que deles se sorve, se estrai, se impregna no corpo para anunciar-se ao novo movimento que não cessa na partida de um, e na chegada do outro. Porque ciclos não são lineares. Ciclos são circularidades repletas de ires e vires que nos dizem muito de nós, de onde estamos, com quem estamos e, para onde queremos ir!


E nessa conversa toda me acompanha a memória de Tiago... Tiago Adão Lara! Meu amigo, tão amado e tão querido que, na semana passada cumpriu, de maneira brilhante, seu ciclo de vida na terra e partiu para a vivência irmanada com a infinitude do universo.


Pensando nas pessoas que se juntam por obrigação, pra cumprir roteiros, para agradar o chefe, e para se integrarem à ditadura do capital sobre os corpos e os sentimentos, me recordo das inúmeras confraternizações, de fim de ano ou não, em que tive a alegria e a honra de estar ao lado de Tiago e de tantos amigos e amigas com quem eu vivi (e vivo!) ciclos de fraternidade, ternura e comunhão. Sempre tendo em mente que viver fraternalmente não significa DE MODO ALGUM viver na ausência do conflito e da discordância...


Recordo-me do tanto que aprendi com Tiago e com pessoas como ele sobre o significado da partilha. O significado de se emprenhar de vida e de se afetar por ela! O significado de encontrar-se com e na outra, e de fazer desse encontro a prática do cotidiano, não se prendendo às datas impostas para a vivência e a expressão dos afetos. E aí, recordando essas confraternizações de fim de ano, que  pra muita gente mais parecem sofrimento e desconforto, do que expressam a alegria do encontro, me lembro também de Tiago dizendo à mim, numa determinada ocasião, que o mais importante do processo é a avaliação do processo, antes que outro se inicie.


Naquele contexto cabia bem a palavra avaliação, mas se eu pudesse agora conversar com o Tiago sobre esse texto, arrisco-me a dizer que, provavelmente, ele diria que o mais importante do ciclo é olhar para ele refletindo o tanto de vida que ele carrega, e como é/foi vivida a vida que está nele...


Lamento os ciclos que se encerram sem serem olhados, refletidos, aprendidos para a significância de novos ciclos... Lamento a pasteurização do ato de celebrar e de promover encontros... Lamento a total ausência de reflexão sobre os significados presentes na potência da vida cotidiana...  Lamento o tanto que se perde, que perdemos a oportunidade da fraternidade. Lamento o encontrar-se apenas para o cumprimento de uma agenda imposta.


Lamento, porém celebro a alegria de buscar-me nessa vida em meio à explosões de encontros repletos de significado, de alegrias, de saberes, sabores e sabenças me comprometendo a romper, o quanto me for possível, com tudo aquilo que anuncia o esvaziamento do potente significado do encontro, do ciclo e da confraternização. Da vida! Aprendi tanto, tanto, tanto da vida com o Tiago que nem tenho a pretensão de aqui tentar dizer tudo o que sendo meu, de Tiago veio...


Grata, Tiago... Grata por tanto aprendizado nas muitas oportunidades de viver, corajosamente, a fraternidade. Sigo COM - FRATERNIzando ao seu modo, e em Ti, meu amado amigo! Potente... Corajosa... E revolucionariamente!

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Aquelas que não dão e não seguram a mão de ninguém



“Comendo” Quintana dedico àquelas
Que feias, passarão. Enquanto eu cá, Passarinha!


Escrevo tendo em mente algumas pessoas, mulheres, a maioria, com quem tenho que li(dar ...) e reflito sobre seus corpos retesos que anunciam um modo de estarem na vida. Não estando. Não entregando. Não dando. Elas não dão. Sabe gente que não dá? Então. São elas!

Mas cá você aqui! Não se iluda pensando que cá eu estou aqui falando do dar da convencionalidade. Sim! Penso em pernas, suores, fluidos, entradas e saídas, mãos, gemidos, odores, sussurros, gritos, afagos, puxões, mordidas, melodias e palavrões que não se encerram na genitália de um sexo prescrito e descrito.

Penso nisso sem reter-me nisso para não transformar-me naquelas que acreditam que quem vive sem sexo não vive, como se vida fosse genitália, vibrador e orgasmo. Mais! Como se um desses estivesse subMETIDO a qualquer outro desses. Como se outro só existisse pela via do um. Penso nisso repousando o pensamento em quem dá para além do sexo, e tem o sexo como apenas uma das formas de dar. Ou de comer. Ou de tudo ao mesmo tempo. Ou de um de cada vez.

Dar. Penso em dar pensando naquelas que não dão. Não dão porque não experimentam fluxos, fluidos, idas e vindas, suores e palavrões. Não dão. Isso. Simplesmente não dão. Podem ATÉ fazer sexo. Mas não dão porque não se dão, não misturam no entra e sai que a vida dá. É sim. A vida dá! Adora dar! Sabe dar! Mas elas, as feias,  elas não. Não dão pra não bagunçar o cabelo e pra não perder o controle do corpo reteso. Arrumado. Cheiroso. Penteado. Impecável. Porque uma coisa não tem nada que ver com a outra. Corpos desalinhados nem sempre anunciam desajustes diante do que a vida dá. Ou come.

Mas elas, essas feiosas, não entendem! Não entendem nada sobre dar! Sobre abrir as pernas, o corpo, a mente, a alma. Nada se abrem, as feiosas, porque ao abrirem-se o entra e sai pode tomar conta, e diante do entra e sai nem sempre há controle de ritmos, fluidos, sussurros e orgasmos. Porque orgasmo descontrola, porque orgasmo tensiona e alivia, tal como é a vida. Tensão e alívio.

Tanto não entendem que dia desses vi numa dessas bocas que não sabem dar, o lema de uma ação de resistência diante de uma prática do período da ditadura militar brasileira (entre o início dos anos 1960 e meados dos anos 1980) “ninguém solta a mão de ninguém”. Que mão? Que mão seguram? A quem protegem suas mãos? A quem afagam? A quem se dão?

Logo após as desastrosas eleições gerais brasileiras de 2018, um grupo de estudantes da USP se reuniu num dos pátios da entidade para ouvirem três intelectuais: Vladimir Safatle, Marilena Chauí e André Singer  falando sobre os possíveis rumos do Brasil diante da ameaça fascista. Em sua fala, Chauí narra o contexto que fez nascer a frase/lema “ninguém solta a mão de ninguém”. Segundo contava, havia uma prática recorrente da repressão, quando, em meio aos estudantes, em locais como salas de aulas, ou qualquer outro ambiente fechado, apagarem as luzes e desaparecerem com pessoas antes que a iluminação retornasse. Como resistência à isso, os grupos começaram, então, a darem-se as mãos e repetirem a frase “ninguém solta a mão de ninguém” para então se protegerem dos “sumiços” provocados pela repressão.

Diante da narrativa de Marilena já posso dizer que, quem não dá, não entende nada do que é, de fato o “ninguém solta a mão de ninguém”. E se não entende não está autorizada a sair por aí anunciando-se como parte disso. Não soltar a mão da outra, do outros, e deles todos vem de um lugar que, primeiramente, demarca resistência e opção política! Quem estava ali resistindo ao sumiço de mãos dadas com o companheiro (aquela que come o pão junto), o estava por colocar-se em oposição à uma determinada lógica de gestão do Estado e da democracia...

Quem estava ali, na escuridão, segurando a mão que estava ao lado, estava, na verdade, dando a mão para a possibilidade da democracia, do direito, da denúncia ao abuso de poder e à violação da vida. As mãos dadas no escuro eram muito mais do que um desenho em preto e branco circulando por bocas de corpos que não sabem dar!

Dar-se a mão no escuro buscando a sobrevivência de todo mundo é uma atitude de quem sabe dar! De quem abre as pernas, a mente e a alma! De quem se entrega aos fluidos, sussurros, gritos, ao ir e vir, as entradas e saídas, aos tremores, aromas e tensões aliviantes. Para não soltar a mão é preciso, primeiro, pegar na mão, oferecer a mão, esfregar uma mão na outra, entrelaçar os dedos no desejo de alinhavar as vidas.

Quem não sabe dar não consegue fazer isso! Não segura nada. Não entende nada. Não se atravessa por nada, porque não se abre em nada. Fica feia. Não feia porque não tem sexo. Ás vezes até tem. Feia porque nem no sexo consegue dar. Se dar. Se trepar. Se gozar! Feia. Elas feias porque não encontram corpos que se seguram no escuro de mãos dadas, se dando uns aos outros. Entre falas, lambidas, vozes e desejos! Desejo que move os corpos em direções diversas nessa movimentação de dar! Dar, ao outro, à outra, com o outro.

Antropofagizar os desejos que nos cercam só é possível a quem sabe dar. Dar-se. Se dar! E dando, abrindo-se no entra e sai é que mora a potência de não soltar a mão de ninguém, porque essas mãos já passaram pelos corpos úmidos dos fluidos e suores de quem se dispõe a encontrar-se! A afetar-se! A atravessar-se pela outra!
Só quem dá gostoso é que sabe o jeito certo de segurar a mão da outra no escuro que ameaça, e que no junto liberta! Só dando é possível compreender que antes de não soltar a mão é preciso tê-la estendida na direção da vida que salta dos muitos corpos que nos cruzam o caminho.

Elas feias não sabem dar. Retêm-se em corpos hirtos, morridos achando que vivem. Repetem a frase que Marilena explicou “ninguém solta a mão de ninguém” sem olharem-se, nem diante do espelho, porque o espelho delas não reflete o além dos corpos, para compreenderem que, na verdade, por não saberem dar, não seguram a mão de ninguém.

Não são nada! Só corpos retesos, arrumados, aromatizados com as mãos abanando. Vazias de dar-se... Ao vento, repetindo frases sem atravessar-se por elas.

Uma pena. Coitadas delas... Feiosas. Passarão... Nunca, Passarinhas... 

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Eu Negra - Parte 2






E cresci assim! Compreendendo que meu lugar no mundo não viria, jamais, sem trabalho, alegria e resistência. Fui andando por esse tal mundo com a “régua e o compasso” que me deram em casa, e deles fui traçando as descobertas variadas sobre a aventura dolorida, e também libertadora, de ser e se compreender mulher negra no Brasil... Não há distinções. Todas somos talhadas no mesmo martelo de ponta firme batendo sobre nossos existires. E assim fui aprendendo e, dia a dia construindo, refazendo-me e descobrindo-me em várias ocasiões, mulher negra. Porque essa identidade não está terminada e vai se construindo nas interações que o racismo e o antirracismo promovem. Enquanto essa faca está apontada para nosso peito é  nos desviando dela que a gente se transforma naquilo que a gente é, numa mistura com o que querem que sejamos. Não há muitas escapatórias... Se nos libertamos, até o dia de quebrar as correntes somos também aquilo que inscrevem em nossos corpos. Se não nos libertamos, nossos corpos são apenas a escrita do que dizem que somos...

E fui sendo assim, muito das tintas de Carminha e Expedito, outros tantos dos coloridos de minha família enorme, e traços variados dos discursos que a branquitude criou para as negras, e que acharam contornos próprios quando de/ao encontro de minhas vivências. Lá na escola católica de gente branca e rica em que eu estudava, as interações eram diversas. Não fui infeliz durante todo o tempo que passei por lá, de igual modo não existem só histórias boas e calorosas para serem contadas, mas não tenho memórias de assédios racistas para narrar, não porque não existiam, mas porque Carminha e Expedito estavam sempre atentos me dando a “régua e o compasso” para o enfrentamento, e demarcando seus próprios espaços de pessoas negras entregando a única filha à um cotidiano branco. “Não grite com ela, Tia Fulana, ela não está acostumada com gritos! Lá em casa ninguém grita com a Giane!” Não eram melhores, mais espertos, mais audazes, eram uma mulher e um homem negros construindo, pelos saberes de sua coletividade, as possibilidades de suas escolhas individuais. Universais e únicos. Pretos buscando e encontrando caminhos de existirem em meio aos interditos, violências e silenciamentos. Que não foram poucos. Não são poucos...

E entre a libertação e a submissão há inúmeras possibilidades. Que não são mais e nem menos, apenas possibilidades que são tantas quantas são as pessoas negras que existem em diáspora. É importante nos referenciarmos de maneira coletiva para que os enfrentamentos sejam sistematizados, principalmente em termos de garantia e promoção de direitos. Mas, não somos uma massa uniforme de experiências únicas. Bell Hooks fala da possibilidade de Madonna ser racista a partir do lugar que é o de uma mulher negra vivendo no norte do mundo, com experiências outras que nem temos conhecimento. E esse lugar não é o mesmo de Giane Elisa, que é uma mulher negra vivendo ao sul do mundo. Ela e eu temos experiências diferentes e isso não é um problema. Ao contrário! É a diversidade de nossa unicidade diante do racismo, que talvez possa nos apontar caminhos diversos no enfrentamento à ele.

Naquela sociedade é provável que Madonna seja só uma mulher branca sendo branca com suas branquices, para mim, e não falo em nome de todas as negras de minha geração (não mesmo!), Madonna é uma referência na MINHA possibilidade de afirmação enquanto mulher. Porque sim. Eu sou negra definida pelos estratagemas do racismo, mas sou também mulher definida pelas nuances do machismo. E Eu Negra sou ainda outras experiências que só se constroem na interação desses dois pertencimentos, e ainda, sou também resultado das interações que podem ser fruto apenas de minhas experiências. E importante dizer, sou fruto de minhas escolhas, porque mesmo escassas, limitadas, comprometidas e afetadas pelo racismo, sim, nós temos escolhas.

E nessas experiências guardadas na memória tem a casa da minha madrinha Maria Benedita onde a Cláudia, minha prima, tinha um disco azul da Madonna, que eu peguei emprestado e nunca mais devolvi. Fiquei fã! Fã da música, dos ritmos, das coreografias que apareciam no Fantástico, e mais tarde, nos  programas de tv do primeiro canal especializado em música do qual tive notícias... Fã. E hoje, quando olho a trajetória que me constituiu a mulher negra que sou, não passo despercebida pela Madonna, apontada pela Bell Hooks, como suspeita de ser mais uma branca racista disfarçada de lutadora das causas negras. Foi essa moça loura, que morena, apresentou em um videoclipe, no final dos anos 80, um Jesus negro, que incendiou minha vivência católica,  que na época, era praticante, militante e atuante. Não era mais um homem branquelo de olho azul, que falava das coisas que eu, cristã da Teologia da Libertação, cresci ouvindo. Era um homem preto, que parecia com meu primo/irmão Elcio, e que se libertava do sacrário para interagir sexualmente com uma mulher. Hoje sei que, como mulher branca a personagem do clipe trazia em si o racismo inerente da condição social que a branquitude constrói pra si, cultivando privilégios e acalentando uma gigantesca falta de limite e de noção quando o assunto é a compreensão de seu lugar na produção do racismo. Sendo branca, a Madonna racista é. Não tem discussão.

Hoje tenho elementos para, ao ver o clipe Like a Prayer, compreender a objetificação do homem negro. Mas, do mesmo modo, não tenho como não admitir que leio aquele tempo em minha história como um despertar de apropriação do meu próprio corpo! Corpo negro, talvez compreendido pela branquitude como território liberado... O imaginário branco de que com as pretas tudo é sexualmente permitido... Diante desse imaginário lembro de mim e Simone saindo, numa noite de sábado para encontrar com minhas amigas de escola num território de lazer esmagadoramente branco e Carminha, na porta de casa, dizendo “não vai deixar que tratem vocês como empregadinhas, não, heim?”.

Falava dela própria, das memórias de sua juventude quando ainda era ela a “empregadinha”. Sabia o que era ser “empregadinha”, o que era ter o corpo numa imagem de constante disponibilidade para o deleite de brancos... Tem isso na minha história e nas memórias atávicas que me fazem ser eu, mas não tem isso na minha experiência. Eu Negra vivi meu corpo num espaço escolar que nem corpo as mulheres podiam ter. Não se falava, não se tocava, não podia haver experimentações. E muito menos prazer! Corpo era aprendido como interdito e, talvez, nessa interdição era o único lugar onde as brancas e as raríssimas negras se encontravam...

Madonna mergulhada nos braços de um monte de homem branco em “Material Girl”, ou insinuando beijar a boca de um Jesus negro, ou ainda se esfregando numa cama com um peito de cone, foi parte do que trouxe até mim um corpo  vivido como trilhas de prazer. Não só prazer sexual, mas prazer de auto pertencimento, prazer de permissão de poder ser para além do que estava dito que podia ser, prazer de se tocar, de permitir ser tocada... E gostar! Eu Negra, filha da Carminha gorda, que por várias vezes escutei dela “homem que quiser gostar de mim tem que gostar é gorda mesmo”, encontrei eco numa experiência pop, de um corpo branco de padrões bastante mercadológicos. Foi em “The Girlie Show” que, vi, ao vivo, vários negros e negras compondo o grupo de bailarinos de Madonna e tomando o palco com seus corpos e experiências negras. Mercadológicos todos, mas pretos, não todos, mas também não era um só dançando com a loura. A vida de novo! Contraditória. Sem receitas! E é essa contradição, essa dobra em minha experiência que me motiva refletir a trajetória que fez de mim a pessoa que sou! Eu Negra. Negra apenas. Nem mais negra, nem menos negra. Apenas negra. Eu Negra. Cheia de tantas outras coisas de mim, sobre mim, comigo e em mim!

Contradição nem sempre é bom, mas, sem dúvida, é sinal de que a vida existe. Ás vezes espalha-me a sensação de que há um manual de ser negra. Um único modo para todas. Comprometida. Engajada. Negra de verdade. Nesse manual há os manuscritos da tonalidade adequada de pele, do tom exato das experiências, do texto recomendado da inserção no mundo. Há o que pode e o que não pode. Sinto as circunscrições, interditos e prescrições como inerentes ao modo como o próprio racismo se arranja criando dicotomias e confusões de sentido e sentires. Uma dessas dicotomias está assentada nos diversos pertencimentos que várias de nós temos, porque temos possibilidades diferentes de afeto, que é dado e recebido, temos possibilidades diferentes de localização na produção do mercado capitalista, temos vivências diferentes ao longo de toda nossa trajetória. Porque nossa experiência não é determinada somente pelo racismo. Embora seja grande determinante do modo como nos constituímos, outras coisas e dimensões constituem nossas trajetórias, e todas elas precisam ser lidas sem simplificar nossa experiência num único dado de nossa existência. Um dado importante e inconteste é esse: a experiência de mulheres negras norte americanas, como Bell Hooks, não é a mesma experiência de nós mulheres negras brasileiras. A experiência do racismo em nós mulheres negras brasileiras não é compartilhada, sentida e vivida do mesmo modo por todas nós em diáspora . Há consciências de lá do norte, que jamais existiram aqui. Há resistências daqui que sequer são reconhecidas por lá.

Aqui me lembro de uma fala de Chimamanda Adichie, onde ela discorre sobre o perigo da história única. E cá, avalio o quanto de único há nas muitas mulheres que hoje temos a liberdade de ser! Sim, porque é sempre bom lembrar que para que eu esteja aqui, sentada no meu apartamento confortável escrevendo para um blog, um tanto de outras mulheres pretas antes de mim vivenciaram experiências que nos olhos desse tempo podem não soar tão libertadoras. Mas é isso! A história é um caminho sem linearidade e composto de várias reentrâncias e contradições. O miúdo dos dias pode trazer para várias de nós uma infinidade de possibilidades de (des) afirmação que talvez nem ainda possamos alcançar tamanha a dimensão.

Cresci junto de brancos, frequentando lugares de brancos, criando laços, desejos, afetos por brancos. Não vivenciei nenhuma experiência de miséria ou privação, e não vivi em um lar demarcado pela violência concreta ou simbólica. E isso não me fez menos negra! Na minha história, nem menos negra pela constante lembrança de Carminha e Expedito sobre o meu lugar de origem, nem pelo modo como o próprio mundo dos brancos ia prescrevendo as limitações impostas ao meu corpo negra. As experiências que podem não ser semelhantes à da maioria das negras, não me livraram de ser alvo do racismo em suas inúmeras nuances e facetas. Também fui, (e sou!!!) de modos vários, martelada em meus existires. E não é aceitável que outras tantas como eu sejam enxergadas como menos vítimas á sanha do racismo.

         E meus olhos de hoje olham para algumas dessas experiências com vontade de colocar fogo em várias pessoas, mas a memória, que como diz Quintana, tem nas mãos uma caixa de lápis de cor, me leva a olhar também os afetos daquele tempo. Os encontros, as trocas, as risadas, as interações. Bem sei que poucas de nós experimentaram, na infância e adolescência escolar vivenciada junto aos brancos, trocas e afetos positivos. Mas é isso. Somos várias de variados tons coloridos pela vida. No meu tom tem, sim, os afetos que naquele tempo eu vivia como sendo meus, para mim, comigo. E eles são parte da mulher negra que sou, porque me constituo também pelo modo como transitei por minhas afetividades. Eu Negra.

Transito em minha pele sem nunca dela sair! Encontro-me sob meus poros exalando de cada encontro os encontros outros que se fizeram em mim libertando-me da pele como apenas um cárcere, mas território de liberdades que não foi me dada por NENHUM branco. Mas a verdade é que nas teias dessa identidade há olhos, mãos, pés, suores, fluidos, peles, vozes de pessoas brancas. A Madonna, as amigas, o Paulo Freite, o Augusto Boal, as referências. O possível. Nem sempre com a chibata na mão, nem sempre sem a chibata na mão. A branco o que é do branco, porque existem, sim, brancos, bem poucos é certo, construindo igualdade racial e pareados a nós, no corpo branco deles, no enfrentamento ao racismo. Nada fazendo além do que deveria ser a obrigação de TODOS eles. Mas fazendo. Na minha experiência de Eu Negra, Madonna é uma dessas brancas, e não a sinto como sente a Bell Hooks porque eu e Bell Hooks não somos a mesma pessoa, e nossos pés pisam em territórios diferentes na vivência de nossa negritude. Universais e únicas.

Eu Negra que me construo nesse Brasil de relações não ditas, de discriminações silenciadas, de vivências negras fartas e repletas da crueza evidente que o racismo constrói. Que não é velado. Não é sutil. É escancarado, covarde na tentativa de se esconder,  sórdido e cínico no modo como se mostra, porque se apresenta no meio de bons afetos que SÃO reais... A empregada doméstica negra que não abandona a família branca, mesmo submetida à um sub status de humanidade. Nem sempre é só pela sobrevivência. Ela gosta, se afeta, se envolve, se identifica, não com o algoz, mas com um sentir que PARA ELA é real. Não é síndrome de Estocolmo. São tão somente e grandemente as relações raciais brasileiras... O racismo que a desenha tem a mesma cara feia e branca mundo a fora. O modo, os instrumentos de vivencia-lo são bastante diferentes no emaranhado que, fio a fio, tece cada uma de nossas trajetórias. Nós Negras.

Eu Negra Diaspórica compartilhando a dor e a solidão com tantas outras negras também. Eu Negra Diaspórica levando em minha pele de muitas a singularidade das minhas experiências únicas, dos meu sentires possíveis, construídos, encontrados entrelaçados, feitos, desfeitos, refeitos. Eu Negra Diaspórica. Fã da Madonna, cepa da Maria Joana... Várias em mim, eu nelas. Eu Negra Desenhada por tudo e todo mundo que antes de mim veio, que comigo encontra. Eu Negra. Filha da Carminha e do Expedito. Eu...