quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Vidaemortevidaemorteévidaevidaémorteevida...

Junto as coisas espalhadas na mesa e jogo tudo pra dentro da bolsa. Tô atrasada! Do outro lado do vidro, Tammy consulta o celular e anuncia que não vai dar tempo... Jô passa correndo pela porta já respondendo à Silvana, que tá fazendo as contas de quantas de nós cabem no carro... Carla desce na frente pra se adiantar, e a Jaqueline com a Valerinha estão na outra sala entoando a Oração de São Francisco... Abro a bolsa, reviro toda a bagunça que tinha despejado lá dentro. Encontro o batom... Me ajeito na pouca luz da sala de trabalho. Alcanço a bolsinha de maquiagem, tiro o espelho pequeno e, de frente pra minha imagem, me dou conta, como que num relance de lucidez, que eu e aquelas mulheres nos movimentamos, de maneira apressada, para chegar à tempo numa missa de sétimo dia...

Sete dias... Um tanto de horas que ainda não são suficientes para compreender a morte repentina de uma pessoa, que em diferentes níveis, nos era querida e que há tão pouco tempo estava ali com a gente. O Zé se foi...

Deslizo o batom pela boca, e um jogo de palavras invade o pensamento... Efêmero... Fugaz... Passageiro... Transitório... Temporário... Morte. Junto das palavras e das imagens que carregam, uns fragmentos de cenas desconexas. Nomes, datas, pedaços de sonhos, lembranças de momentos, as fotos que enfeitam minha mesa de trabalho, o batom borrado, o espelho...Eu.

Eu diante do mistério, da incompreensão sobre algo que é, no fim das contas, a única realidade da qual ninguém pode fugir e, ainda assim, tão pouco confortável... Desconforto com uma condição tão pertencente à vida. Incompreensão inteirando-se com a experiência de impedimento, de ruptura, de separação... Eu confrontando-me com a fé que me constitui, a crença na sequência da vida que não se ajeita com o mal estar diante da morte apresentada como finitude... A morte. Essa proscrita.

Não falamos dela. Não a recebemos como parte do todo que é viver. Não dividimos, umas com as outras, o medo diante dela. Evitamos. Protelamos. Adiamos. E, de repente, ela chega. E, de novo, estamos lá, no mesmo ciclo de dor e sofrimento. E eu cá, abraçando-me à minha fé quando a morte mostra sua cara fria...

Coitada. A cara fria da morte é só mesmo o reflexo desse modo besta como  lidamos com a vida, sem alcançar a dimensão do que a vida é. Nós. As filhas de um aprendizado consumista, individualista e apegado à juventude e à infalibilidade do corpo. Esse, que longe da corporeidade libertadora é circunscrito numa cartilha de uso e consumo. Nós. As filhas de relações nomeadas nessa mesma cartilha. Nomenclaturas que prescrevem afetos independente da força ou da opressão que são construídas em cada uma dessas relações... Ah... Nós... empobrecidas pelo que o capitalismo ensina. Tanta coisa que não presta pra nada! Nós... Passando por aqui, e jogando ao tempo a oportunidade de fazer da morte uma experiência de vida.

Viver a dor da perda como parte essencial para a celebração da vida. Deixar os dias se ajeitarem na vivência do luto sem esconder-se dele. Entregar à esse luto um sentimento de gratidão, que nos alimenta na compreensão dos rituais de passagem como momentos intensamente grávidos de fins e começos. Falar da morte para falar da vida, da possibilidade de viver celebrando cada passo, cada conquista. Celebrando também as perdas e as dores que desenham, pelos ciclos do tempo, os traços da mulher que sou! Sendo no ir e vir da vida...

Acarinho a saudade, exponho fotos, converso e costuro atitudes grandemente recheadas de significado e resistência. As ausências que me colorem ocupam lugares únicos no meio das tantas lembranças que não procuro evitar. Nas lacunas deixadas por um corpo que deixa de existir mora, tranquila, a potência de vida que animava o encontro que pude experimentar com a pessoa que partiu. Dessa potência, uma experiência boa de olhar a vida e as pessoas como presentes que não são eternos. Há potência de vida em perceber a vida como transitoriedade e transcendentalidade!

Não existe uma realidade que nos possibilite apreender eternamente as pessoas, suas experiências e seus corpos... Isso me impulsiona a pensar cada uma dessas pessoas como depositária de cuidados dentro disso que é transitório. Cuidado como um ato revolucionário, concreto e possível! Somente assumindo a morte como parte da vida é que se tem a dimensão da grandiosidade do cuidado! Somente confrontando a cara da morte é que essa transitoriedade pode ser absorvida. E, percebendo a morte como potência de vida, é que a vida pode tornar-se imensamente significativa, pois que é uma experiência cheia de incertezas, onde o único lugar definido é o território de morrer, trazendo nele sua misteriosa potência de gerar vida!



Não consigo! Quero sentir assim. Não consigo... Limpo os cantos da boca borrada pelo batom que deslizei sob  na pouca luz da sala de trabalho. Junto tudo e, de novo, jogo dentro da bolsa sem ajeitar nada... A garganta aperta até virar uma lágrima... Me integro na cena das outras mulheres se ajeitando pra missa... E vou. Vou seguindo na vida que não para... Nos dias que trazem outras histórias, outras lágrimas e outros risos. Permito a tristeza, e me embrenho com a incompletude diante da única certeza: é preciso viver para que a vida jamais termine!


Valeu, Zé!

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Família Negra! Arroz misturado...


“Você vai levar o arroz pra misturar lá?” (pausa) “Não, nêga! Já põe cozido mesmo, e lá só mistura”(pausa) “É uai, só mistura lá”(pausa) “ Estraga nada! Foi assim da outra vez! Cê tá caduca!?” (pausa) (risada!!!!) “Tem isopor aqui, vou pedir o Dito pra levar aí pra você”...

Ouvi esses pedaços de conversa num sábado, há muitos anos... Final de tarde, véspera da comemoração dos 50 anos de meu pai e dos 90 e tantos de minha vó. Tinha um ônibus alugado pra levar todo mundo num sítio onde teria quadrilha, bandeirinhas, piscina, churrasco, karaokê, futebol, e um tanto de outras coisas pra família toda. Poucas posses e muita criatividade!

Carminha e Cirene conversavam ao telefone acertando os últimos detalhes do que seria servido no almoço. O telefone foi tocando durante toda a tarde, e do lado de cá da linha, ora minha mãe gargalhava, ora eu via que elas não estavam se entendendo muito sobre a logística do almoço... E seguiram assim quase até o dia seguinte... E lá na festa, das muitas belas imagens que seguem vivas em minha memória, uma das mais fortes é a de Cirene debruçada em cima do isopor misturando o arroz: “ô Gorda! Joga mais frango aqui que é pra ficar farto”

Aquela festa enorme, como tantas outras enormes festas, é uma metáfora do que foi (e segue sendo), por longos e longos anos, a minha família! Um monte de gente preta, alegre, confusa, ás vezes desordenada, e sempre solidária! Sob o braço da Maria Joana, e a firmeza da Carminha, os afetos iam se fazendo e refazendo-se nas experiências de encontros repletos das mais variadas vivências de diálogo, entrega, acolhida e celebração! Acolhida aprendida nas interações diante de alegrias, tragédias, conquistas e perdas

Tudo vivido junto, misturado, falado (e falado bem alto), conversado! No seu tempo, do seu jeito, no seu espaço... Sem delimitações prévias! Acolhida e encontro. No meio dos de sangue, em meio à tantos outros que se juntaram. Cirene, e outros uns, se achegaram, e ela, além do arroz, misturava-se nas histórias, nos conflitos, nas tragédias que experimentamos ao longo da vida. Se o barranco cai lá na casa do Tião, todo mundo se abriga lá na casa da vó... Se a Cilinha tem que sair pra trabalhar, leva as crianças lá pra Carminha olhar... Se tem o sonho de levantar a casa própria, junta com a Cirene, e entra as duas pro mutirão, pra ir por aí, junto de outras pretas e pretos, ajudando a levantar parede e encher laje... Se é a primeira comunhão da Giane chama lá a outra Carminha pra fazer o bolo que a menina gosta...

 Juntos pra chorar. Juntos pra vibrar! E essas tantas imagens, tão pulsantes em minhas memórias, desenham uma experiência bem comum à tantas famílias negras em diáspora! A alegria do aconchego diante da porta sempre aberta para acolher! Do mesmo modo que a ancestralidade de diversas regiões da África vivenciou suas interações afetivas e sua vida na coletividade. No meio da roda... No diálogo com a vida! Sem temer o que a vida tem... Uma tradição oponente ao ideal de família (branca) burguesa, a família preta dialogando com a vida, não dá valor ao silêncio envergonhado diante das dificuldades de um dos seus. Os tantos seus...

A família preta no meio da roda tem apreço pela partilha, pela acolhida, pela palavra... Todo mundo entra! Todo mundo fala!Todo mundo escuta! Se tem pra um, tem pros outros todos! A família preta em diáspora traz, nas marcas de seus passos, a experiência das portas sem trancas, do diálogo como rotina, do fazimento de laços de afeto que ultrapassam, em muito, as delimitações, tão brancamente capitalistas, de família, de afeto, de encontro, de entrega, de acolhimento...

Não é sem motivo, que as formas de tratamento na vivência das religiões, que se constituíram na diáspora, são mãe, pai, irmã,  irmão... Uma experiência de uma família que não precisa de sangue para se firmar diante do Sagrado da vida. Uma família onde a ancestralidade é respeitada sem que filhas e filhos sejam apenas daquele lugar, daquela pessoa, daquele núcleo... O miolo tem todo tipo de farelo!  Filhos e Filhas somos todas e todos... Unidos pela potência dessa forma de vida, atravessados pela experiência ímpar de ser mulher e homem na diáspora negra. E na gira cabe todo mundo, todo mundo entra, todo mundo se encontra no cuidado, no acolhimento, na dança!

E aí, nessa experiência de ancestralidade talvez resida uma dificuldade que vou levando pela vida. Minha limitação em compreender (e vivenciar...) as relações circunscritas pelos lugares que os nomes criam... A mãe, o pai, o irmão, a amiga, o namorado, a esposa, a filha, o vizinho... O ocidente branco ensinou que para cada nome tem um lugar, e para cada lugar uma forma de afeto delimitada pelo modo como os sentimentos, os desejos, as entregas devem ser vivenciados e celebrados. A invenção branca e ocidental chamada capitalismo, estabelece até dias e datas para que esses lugares e afetos sejam exaltados, reverenciados, presenteados, e assim, cada vez mais circunscritos a partir de um manual do que é previsto para cada lugar, cada afeto e cada vivência...

Nesse modelo não cabem afetos de portas abertas, de diálogo com a vida, da roda de encontro. Para cada afeto um lugar, para cada lugar um jeito de sentir, e para tudo isso uma limitação sem tamanho diante da grandeza do que é a vida, do que são as experiências, do que é o encontro... Esse encontro que pode, sim, ser experimentado nos laços que o cotidiano cria, sem a necessidade de diferenciar as gostanças, as sabenças, as peles em contato... Diferença nos desejos, porque desejo vai caçando sua volta no andar da nossa cultura... E anda desejo, anda experiência, anda falares, dizeres, sentires... Andam pro lado que o sentimento manda andar, porque tem porta aberta pra acolher as gentes e seus muitos encontros de tão infinitos significados! Encontros de infindáveis resistências que a gente preta aprende todo dia, o dia todo nessa vida...

Encontro de gente... Gente!

Caminhando por aí... Se esbarrando na vida... Indo... Vindo... Permanecendo... Fazendo... E encontrando, encontrando e encontrando...

         Encontrando na vida e misturando o arroz pra festa!!!!!