domingo, 24 de setembro de 2017

Mucama e Sinhá

Mucama e Sinhá

Cresceram juntas. Mucama e Sinhá.
Preta e branca.
Brincavam as mesmas brincadeiras.
Ensinavam-se e aprendiam-se.
Uma à outra.
Crianças, circulavam entre as fronteiras do cativeiro e da liberdade.
De mãos dadas. Uma trazia a outra pro seu mundo.
Escondidas, descobriam os códigos de cada espaço.
A senzala visitada longe do olho do feitor.
Se vista, “saia daí, Sinhá!”
O quarto de princesa onde a Mucama podia sentar na cama.
Se vista, “saia daí, Negrinha.”
Os cantos da casa grande, os porões do sofrimento, os dias de encontro e amizade.
Tudo foi colorindo os afetos de Mucama e Sinhá.
No sopro do tempo, os dias trouxeram aos corpos meninas as formas mulher.
Mulher Preta. Mulher Branca.
Afetos de códigos aprendidos.
Novos corpos que não cabem mais no esconderijo dos mundos opostos.
Sinhá e Mucama dividem os dias e se afastam nos símbolos.
A casa grande tem  espaço livre pra Mucama. A cozinha.
O trânsito, a fruição. As fronteiras
A senzala não põe os olhos em Sinhá
Naqueles corpos há perigo. O código.
Sinhá ama Mucama
E quando senta na mesa do jantar lembra dela.
Mucama não come ali. Aquela comida é de Sinhá.
Mucama não senta na mesa de branco.
Mucama come lá no fundo. Em silêncio.
Alegria de Mucama não agrada branco.
Os brancos de Sinhá riem no mundo que é só deles.
Sinhá queria Mucama por perto, e sonha vê-la no meio da prataria.
Mundos se encontrando, afetos se realizando...
Mas prataria pra Mucama é só pra limpar.
“Bem limpinha, negrinha”
Vê sua cara no convexo da colher.
Caras pretas não avançam nesses muros...
Os afetos não cruzam as fronteiras do que tem pra Mucama e do que existe pra Sinhá.
Mucama não entra no baile.
Sinhá e Mucama dançam juntas nos sorrisos confidentes.
Mas o salão não pode ver Mucama dançando.
Então Sinhá dança triste.
Depois menos triste.
Depois quase alegre.
E alegre.
O aprendizado.
Junto com Mucama é  só onde não tem o mundo de Sinhá.
O afeto existe.


Ele não é maior que o mundo...

sábado, 23 de setembro de 2017

Carta ao Branco de branco corpo

Olá Branco,

Dia desses, na costumeira viagem pelas redes sociais, fui ter com três situações postadas que, de seus desdobramentos um tanto de pensamentos e conexões foram revelando a matreirice branca brasileira diante da dureza do racismo que sofro no cotidiano.

        Matreirice, Branco, é uma palavra que, ao menos a mim, remete a um modo dançante de fruir a vida. Dança mesmo. Dessa que tem pernas, braços, melodia, ritmo, corpos se encontrando... Daí, Branco, que matreirice talvez não seja a melhor palavra para nomear isso que estou atribuindo à uma espécie de pensamento branco brasileiro. Um que se esquiva, que se faz de desentendido, que tira o corpo fora. Corpo branco. O seu corpo branco.

Estava lá uma foto de Rafael Braga, condenado há 11 anos de prisão por portar 9,3 g de cocaína e 0,6 gramas de maconha, saindo do encarceramento pelo “benefício” da prisão domiciliar. Essa, concedida para que Rafael possa se tratar de uma tuberculose adquirida no período de encarceramento. Aí, que a foto do momento mostrava Rafael cercado de pessoas brancas como você. Todas sorridentes. Numa dessas postagens comentei o curioso das relações raciais no Brasil: os brancos que encarceram eram, ali na foto, também os brancos festejando a conquista de Rafael...

Mais adiante, Branco, na mesma rede, tava lá, um vídeo onde o cantor Carlinhos Brown, numa apresentação num evento de rock, em 2001, era atacado por um saraivada de copinhos de plástico atirados pelo público presente. Ali, Branco, ficou meu comentário: os racistas estão em toda parte.

Por fim, encontrei a imagem da cerveja preta do Moçambique fazendo alusão ao corpo de mulheres negras. O corpo do sexo bom, da volúpia, do prazer... Escrevi lá: não é fácil ser mulher negra em diáspora.

Aí, Branco, quase que imediatamente, nas três postagens, os de corpos brancos apareceram para falar de meu equívoco na interpretação das imagens! “Os brancos aparecem onde os negros não estão”, “música não tem cor”, “os copinhos são atirados no músico porque ele não é roqueiro”, “Lobão é branco e levou copinho na cara” “mas a loura também é objetificada nas propagandas de cerveja”... Esses foram os argumentos mais recorrentes nos comentários que se contrapuseram às minhas observações. Não! Não são observações, Branco. São experiências.

Experiências inscritas no meu corpo, que no processo da diáspora é vivenciado como um enunciado constante. Sem cessar. Sem intervalos. Sem pausas. Meu corpo carrega inscrições que o fazem ser um discurso sobre meu lugar no mundo. Meu não lugar nos vários lugares. Meus encontros. Aquilo que me é possível.

Um corpo negro, Branco, nunca é só um corpo negro. Ele é o atravessamento das experiências que o racismo promove. É atravessamento de exclusões e silenciamentos. As mesmas que seguem se refazendo dia a dia até mesmo quando conseguimos nos insurgir contra elas.

Há sempre um corpo branco como o seu dizendo que não é bem assim. Há sempre um corpo branco como o seu desconsiderando que como em toda trama, os fios estão entrelaçados por experiências que demarcam as presenças e ausências de uma história milenar.

Expanda-se, Branco, e ajeite seu pensamento para pensar a macro estrutura da sociedade racista em que vivemos se imiscuindo na micropolítica do cotidiano. Estamos falando de ideologia, e não do que você faz pontualmente no seu cotidiano para ser um Branco bacana. Assuma sua pele diante da falta de opção que eu tenho quando se trata de assumir a minha pele.

Não Branco, você não deveria ter o direito de se furtar disso. As inscrições grafadas em minha pele, em meu cabelo, em meu nariz, em minha voz foram feitas por você, por seu povo e por sua história. Você escreveu isso, mas quer seguir na vida como se a letra não fosse sua. Ela é. Ela determina espaços. Ela circunscreve experiências. Ela sufoca. Oprime. Silencia. Adoece. Mata.

Não Branco, eu sei que você queria que fosse assim do jeito que você pensa. Mas não é. Seu corpo não lhe permite viver a experiência do não racismo. O racismo parte de ti. Ele está em você e no nosso encontro ele chega até a mim. Joga-me as letras que compõem o texto sobre minha história nesse caminho. Você não me escreve. Você não me define, mas minhas experiências de sofrimento, medo, abandono e morte estão marcadas no seu corpo, porque é dele que elas nascem. Não fuja disso. Não negue isso. Perca o medo do racismo que você constrói, alimenta e mantem. Desconforte-se e teça seus fios na trama que estamos aqui a compartilhar.

Compartilhe-se.

Não ignore seu corpo. Seu corpo diante do meu é sempre seu corpo branco diante do meu corpo negro. Você tem seus desejos, suas escolhas, suas bacanices, suas construções positivas, suas superações diante do racismo. Que bom para o mundo que você tenha! Mas não se exima de pensar-se nesse corpo quando a história não me permite pensar a mim fora do meu corpo. Eu não estou sozinha nessa teia. Você está aqui comigo ainda que eu não queira, ainda que você não queira.

Nós estamos.

        E não estamos em lugares iguais. Por onde eu for meu corpo me anuncia, e com você não deve ser  diferente, meu caro. Ainda que suas tessituras estejam coloridas pelo amor, pelo afeto, pelo cuidado constituído nas relações que criamos juntos, elas não estão livres de todas as marcas que sua pele representa diante da minha.

Não ignore isso.

Não ignore a violência da qual tu é vítima. Não vire a cara para a violência que você promove. E, nas duas, não desconsidere seu corpo branco. Seu corpo branco tem histórias para além do que eu e você temos aqui hoje. Meu corpo não fica fora dessa relação. O seu também não deve ficar.

Desestabilize-se.

Você não é SÓ o seu corpo branco. Mas o seu corpo branco diz muito sobre as histórias que você pode contar.

Então, Branco, funciona assim: O copinho de plástico que chega na cara preta do Carlinhos Brown, não chega na cara branca do Lobão com a mesma força. Falo de força histórica. O peso de uma agressão numa cara preta, nunca é o mesmo peso de uma agressão numa cara branca. O Rafael Braga cercado de gente branca sorridente, ao ser transferido para prisão domiciliar, significa o desenho da tensão confusa que atravessa nossas relações nesse país. O corpo que ora celebra sua conquista é o corpo que o faz encarcerado, que o faz turbeculoso, e que o faz sorrir sem dentes na boca. A loura objetificada na garrafa de cerveja não deixa de ser objetificada, mas as saídas, as alternativas e as resistências diante dessa objetificação a que brancas e negras estamos submetidas não são forjadas pelas mesmas experiências, e nem construídas com as mesmas possibilidades.

         Não são.

O seu corpo branco na gira não é o meu corpo negro na gira. O seu corpo branco no funk não é o meu corpo negro no funk. O seu corpo branco no samba não é o meu corpo branco no samba. O seu corpo branco na violência não é o meu corpo negro na violência.

Não é.

O seu corpo branco é o seu corpo branco e ele não é só um detalhe diante do meu corpo negro. Pare de se comportar como se sua pele não fizesse diferença na sua forma de estar no mundo. Seja ela qual forma for. Faz diferença.

Corporalize-se!

A experiência está posta se teu ouvido tiver consciência histórica para poder escutar. Minha voz não mais se cala.

Nunca mais.

Podemos cantar juntos nos passos da minha diáspora. Mas ela é minha. O tambor é meu. O grito é meu. O brado é meu. A composição que podemos fazer juntos não mistura nossos corpos diante de nossas experiências inteiramente diversas. Você é Branco. Eu sou negra.


Podemos seguir em infinitos caminhos. Você sendo Branco. Eu sendo negra. E ainda assim seguir. Sem silenciamentos, com lugares postos, tramas reveladas e possibilidades construídas dentro disso. Essa é a nossa realidade, e ela só se torna impeditiva se você, Branco, permanece fingindo que nossas peles não interferem na nossa vida e em tudo o que vivemos dela.

Ocupando lugares diferentes nós nos interferimos.

E é isso.