Olá
Branco,
Dia
desses, na costumeira viagem pelas redes sociais, fui ter com três situações
postadas que, de seus desdobramentos um tanto de pensamentos e conexões foram
revelando a matreirice branca brasileira diante da dureza do racismo que sofro
no cotidiano.
Matreirice,
Branco, é uma palavra que, ao menos a mim, remete a um modo dançante de fruir a
vida. Dança mesmo. Dessa que tem pernas, braços, melodia, ritmo, corpos se encontrando...
Daí, Branco, que matreirice talvez não seja a melhor palavra para nomear isso
que estou atribuindo à uma espécie de pensamento branco brasileiro. Um que se
esquiva, que se faz de desentendido, que tira o corpo fora. Corpo branco. O seu
corpo branco.
Estava
lá uma foto de Rafael Braga, condenado há 11 anos de prisão por portar 9,3 g de
cocaína e 0,6 gramas de maconha, saindo do encarceramento pelo “benefício” da
prisão domiciliar. Essa, concedida para que Rafael possa se tratar de uma
tuberculose adquirida no período de encarceramento. Aí, que a foto do momento
mostrava Rafael cercado de pessoas brancas como você. Todas sorridentes. Numa
dessas postagens comentei o curioso das relações raciais no Brasil: os brancos
que encarceram eram, ali na foto, também os brancos festejando a conquista de
Rafael...
Mais
adiante, Branco, na mesma rede, tava lá, um vídeo onde o cantor Carlinhos
Brown, numa apresentação num evento de rock, em 2001, era atacado por um
saraivada de copinhos de plástico atirados pelo público presente. Ali, Branco,
ficou meu comentário: os racistas estão em toda parte.
Por
fim, encontrei a imagem da cerveja preta do Moçambique fazendo alusão ao corpo
de mulheres negras. O corpo do sexo bom, da volúpia, do prazer... Escrevi lá: não
é fácil ser mulher negra em diáspora.
Aí,
Branco, quase que imediatamente, nas três postagens, os de corpos brancos
apareceram para falar de meu equívoco na interpretação das imagens! “Os brancos
aparecem onde os negros não estão”, “música não tem cor”, “os copinhos são
atirados no músico porque ele não é roqueiro”, “Lobão é branco e levou copinho
na cara” “mas a loura também é objetificada nas propagandas de cerveja”... Esses
foram os argumentos mais recorrentes nos comentários que se contrapuseram às
minhas observações. Não! Não são observações, Branco. São experiências.
Experiências
inscritas no meu corpo, que no processo da diáspora é vivenciado como um
enunciado constante. Sem cessar. Sem intervalos. Sem pausas. Meu corpo carrega
inscrições que o fazem ser um discurso sobre meu lugar no mundo. Meu não lugar
nos vários lugares. Meus encontros. Aquilo que me é possível.
Um
corpo negro, Branco, nunca é só um corpo negro. Ele é o atravessamento das
experiências que o racismo promove. É atravessamento de exclusões e
silenciamentos. As mesmas que seguem se refazendo dia a dia até mesmo quando
conseguimos nos insurgir contra elas.
Há
sempre um corpo branco como o seu dizendo que não é bem assim. Há sempre um
corpo branco como o seu desconsiderando que como em toda trama, os fios estão
entrelaçados por experiências que demarcam as presenças e ausências de uma
história milenar.
Expanda-se,
Branco, e ajeite seu pensamento para pensar a macro estrutura da sociedade
racista em que vivemos se imiscuindo na micropolítica do cotidiano. Estamos
falando de ideologia, e não do que você faz pontualmente no seu cotidiano para
ser um Branco bacana. Assuma sua pele diante da falta de opção que eu tenho
quando se trata de assumir a minha pele.
Não
Branco, você não deveria ter o direito de se furtar disso. As inscrições
grafadas em minha pele, em meu cabelo, em meu nariz, em minha voz foram feitas
por você, por seu povo e por sua história. Você escreveu isso, mas quer seguir
na vida como se a letra não fosse sua. Ela é. Ela determina espaços. Ela
circunscreve experiências. Ela sufoca. Oprime. Silencia. Adoece. Mata.
Não
Branco, eu sei que você queria que fosse assim do jeito que você pensa. Mas não
é. Seu corpo não lhe permite viver a experiência do não racismo. O racismo
parte de ti. Ele está em você e no nosso encontro ele chega até a mim. Joga-me
as letras que compõem o texto sobre minha história nesse caminho. Você não me
escreve. Você não me define, mas minhas experiências de sofrimento, medo,
abandono e morte estão marcadas no seu corpo, porque é dele que elas nascem.
Não fuja disso. Não negue isso. Perca o medo do racismo que você constrói,
alimenta e mantem. Desconforte-se e teça seus fios na trama que estamos aqui a
compartilhar.
Compartilhe-se.
Não
ignore seu corpo. Seu corpo diante do meu é sempre seu corpo branco diante do
meu corpo negro. Você tem seus desejos, suas escolhas, suas bacanices, suas
construções positivas, suas superações diante do racismo. Que bom para o mundo
que você tenha! Mas não se exima de pensar-se nesse corpo quando a história não me permite pensar a mim fora do meu corpo. Eu não
estou sozinha nessa teia. Você está aqui comigo ainda que eu não queira, ainda
que você não queira.
Nós
estamos.
E não estamos em lugares iguais. Por
onde eu for meu corpo me anuncia, e com você não deve ser diferente, meu caro. Ainda que suas tessituras
estejam coloridas pelo amor, pelo afeto, pelo cuidado constituído nas relações
que criamos juntos, elas não estão livres de todas as marcas que sua pele
representa diante da minha.
Não
ignore isso.
Não
ignore a violência da qual tu é vítima. Não vire a cara para a violência que
você promove. E, nas duas, não desconsidere seu corpo branco. Seu corpo branco
tem histórias para além do que eu e você temos aqui hoje. Meu corpo não fica
fora dessa relação. O seu também não deve ficar.
Desestabilize-se.
Você
não é SÓ o seu corpo branco. Mas o seu corpo branco diz muito sobre as
histórias que você pode contar.
Então,
Branco, funciona assim: O copinho de plástico que chega na cara preta do
Carlinhos Brown, não chega na cara branca do Lobão com a mesma força. Falo de
força histórica. O peso de uma agressão numa cara preta, nunca é o mesmo peso
de uma agressão numa cara branca. O Rafael Braga cercado de gente branca
sorridente, ao ser transferido para prisão domiciliar, significa o desenho da
tensão confusa que atravessa nossas relações nesse país. O corpo que ora
celebra sua conquista é o corpo que o faz encarcerado, que o faz turbeculoso, e
que o faz sorrir sem dentes na boca. A loura objetificada na garrafa de cerveja
não deixa de ser objetificada, mas as saídas, as alternativas e as resistências
diante dessa objetificação a que brancas e negras estamos submetidas não são
forjadas pelas mesmas experiências, e nem construídas com as mesmas
possibilidades.
Não
são.
O
seu corpo branco na gira não é o meu corpo negro na gira. O seu corpo branco no
funk não é o meu corpo negro no funk. O seu corpo branco no samba não é o meu
corpo branco no samba. O seu corpo branco na violência não é o meu corpo negro
na violência.
Não
é.
O
seu corpo branco é o seu corpo branco e ele não é só um detalhe diante do meu
corpo negro. Pare de se comportar como se sua pele não fizesse diferença na sua
forma de estar no mundo. Seja ela qual forma for. Faz diferença.
Corporalize-se!
A
experiência está posta se teu ouvido tiver consciência histórica para poder
escutar. Minha voz não mais se cala.
Nunca
mais.
Podemos
cantar juntos nos passos da minha diáspora. Mas ela é minha. O tambor é meu. O
grito é meu. O brado é meu. A composição que podemos fazer juntos não mistura
nossos corpos diante de nossas experiências inteiramente diversas. Você é
Branco. Eu sou negra.
Podemos
seguir em infinitos caminhos. Você sendo Branco. Eu sendo negra. E ainda assim
seguir. Sem silenciamentos, com lugares postos, tramas reveladas e
possibilidades construídas dentro disso. Essa é a nossa realidade, e ela só se
torna impeditiva se você, Branco, permanece fingindo que nossas peles não
interferem na nossa vida e em tudo o que vivemos dela.
Ocupando
lugares diferentes nós nos interferimos.
E
é isso.