E
cresci assim! Compreendendo que meu lugar no mundo não viria, jamais, sem
trabalho, alegria e resistência. Fui andando por esse tal mundo com a “régua e
o compasso” que me deram em casa, e deles fui traçando as descobertas variadas
sobre a aventura dolorida, e também libertadora, de ser e se compreender mulher
negra no Brasil... Não há distinções. Todas somos talhadas no mesmo martelo de
ponta firme batendo sobre nossos existires. E assim fui aprendendo e, dia a dia
construindo, refazendo-me e descobrindo-me em várias ocasiões, mulher negra.
Porque essa identidade não está terminada e vai se construindo nas interações
que o racismo e o antirracismo promovem. Enquanto essa faca está apontada para
nosso peito é nos desviando dela que a
gente se transforma naquilo que a gente é, numa mistura com o que querem que
sejamos. Não há muitas escapatórias... Se nos libertamos, até o dia de quebrar
as correntes somos também aquilo que inscrevem em nossos corpos. Se não nos
libertamos, nossos corpos são apenas a escrita do que dizem que somos...
E
fui sendo assim, muito das tintas de Carminha e Expedito, outros tantos dos
coloridos de minha família enorme, e traços variados dos discursos que a
branquitude criou para as negras, e que acharam contornos próprios quando de/ao
encontro de minhas vivências. Lá na escola católica de gente branca e rica em
que eu estudava, as interações eram diversas. Não fui infeliz durante todo o
tempo que passei por lá, de igual modo não existem só histórias boas e
calorosas para serem contadas, mas não tenho memórias de assédios racistas para
narrar, não porque não existiam, mas porque Carminha e Expedito estavam sempre
atentos me dando a “régua e o compasso” para o enfrentamento, e demarcando seus
próprios espaços de pessoas negras entregando a única filha à um cotidiano
branco. “Não grite com ela, Tia Fulana, ela não está acostumada com gritos! Lá
em casa ninguém grita com a Giane!” Não eram melhores, mais espertos, mais
audazes, eram uma mulher e um homem negros construindo, pelos saberes de sua
coletividade, as possibilidades de suas escolhas individuais. Universais e
únicos. Pretos buscando e encontrando caminhos de existirem em meio aos
interditos, violências e silenciamentos. Que não foram poucos. Não são
poucos...
E
entre a libertação e a submissão há inúmeras possibilidades. Que não são mais e
nem menos, apenas possibilidades que são tantas quantas são as pessoas negras
que existem em diáspora. É importante nos referenciarmos de maneira coletiva
para que os enfrentamentos sejam sistematizados, principalmente em termos de
garantia e promoção de direitos. Mas, não somos uma massa uniforme de
experiências únicas. Bell Hooks fala da possibilidade de Madonna ser racista a
partir do lugar que é o de uma mulher negra vivendo no norte do mundo, com
experiências outras que nem temos conhecimento. E esse lugar não é o mesmo de
Giane Elisa, que é uma mulher negra vivendo ao sul do mundo. Ela e eu temos
experiências diferentes e isso não é um problema. Ao contrário! É a diversidade
de nossa unicidade diante do racismo, que talvez possa nos apontar caminhos
diversos no enfrentamento à ele.
Naquela
sociedade é provável que Madonna seja só uma mulher branca sendo branca com
suas branquices, para mim, e não falo em nome de todas as negras de minha
geração (não mesmo!), Madonna é uma referência na MINHA possibilidade de
afirmação enquanto mulher. Porque sim. Eu sou negra definida pelos estratagemas
do racismo, mas sou também mulher definida pelas nuances do machismo. E Eu
Negra sou ainda outras experiências que só se constroem na interação desses
dois pertencimentos, e ainda, sou também resultado das interações que podem ser
fruto apenas de minhas experiências. E importante dizer, sou fruto de minhas
escolhas, porque mesmo escassas, limitadas, comprometidas e afetadas pelo
racismo, sim, nós temos escolhas.
E
nessas experiências guardadas na memória tem a casa da minha madrinha Maria
Benedita onde a Cláudia, minha prima, tinha um disco azul da Madonna, que eu
peguei emprestado e nunca mais devolvi. Fiquei fã! Fã da música, dos ritmos,
das coreografias que apareciam no Fantástico, e mais tarde, nos programas de tv do primeiro canal
especializado em música do qual tive notícias... Fã. E hoje, quando olho a
trajetória que me constituiu a mulher negra que sou, não passo despercebida
pela Madonna, apontada pela Bell Hooks, como suspeita de ser mais uma branca
racista disfarçada de lutadora das causas negras. Foi essa moça loura, que
morena, apresentou em um videoclipe, no final dos anos 80, um Jesus negro, que
incendiou minha vivência católica, que na
época, era praticante, militante e atuante. Não era mais um homem branquelo de
olho azul, que falava das coisas que eu, cristã da Teologia da Libertação,
cresci ouvindo. Era um homem preto, que parecia com meu primo/irmão Elcio, e
que se libertava do sacrário para interagir sexualmente com uma mulher. Hoje
sei que, como mulher branca a personagem do clipe trazia em si o racismo
inerente da condição social que a branquitude constrói pra si, cultivando
privilégios e acalentando uma gigantesca falta de limite e de noção quando o
assunto é a compreensão de seu lugar na produção do racismo. Sendo branca, a
Madonna racista é. Não tem discussão.
Hoje
tenho elementos para, ao ver o clipe Like a Prayer, compreender a
objetificação do homem negro. Mas, do mesmo modo, não tenho como não admitir
que leio aquele tempo em minha história como um despertar de apropriação do meu
próprio corpo! Corpo negro, talvez compreendido pela branquitude como território
liberado... O imaginário branco de que com as pretas tudo é sexualmente
permitido... Diante desse imaginário lembro de mim e Simone saindo, numa noite
de sábado para encontrar com minhas amigas de escola num território de lazer
esmagadoramente branco e Carminha, na porta de casa, dizendo “não vai deixar
que tratem vocês como empregadinhas, não, heim?”.
Falava
dela própria, das memórias de sua juventude quando ainda era ela a
“empregadinha”. Sabia o que era ser “empregadinha”, o que era ter o corpo numa
imagem de constante disponibilidade para o deleite de brancos... Tem isso na
minha história e nas memórias atávicas que me fazem ser eu, mas não tem isso na
minha experiência. Eu Negra vivi meu corpo num espaço escolar que nem corpo as
mulheres podiam ter. Não se falava, não se tocava, não podia haver
experimentações. E muito menos prazer! Corpo era aprendido como interdito e,
talvez, nessa interdição era o único lugar onde as brancas e as raríssimas
negras se encontravam...
Madonna
mergulhada nos braços de um monte de homem branco em “Material Girl”, ou
insinuando beijar a boca de um Jesus negro, ou ainda se esfregando numa cama
com um peito de cone, foi parte do que trouxe até mim um corpo vivido como trilhas de prazer. Não só prazer
sexual, mas prazer de auto pertencimento, prazer de permissão de poder ser para
além do que estava dito que podia ser, prazer de se tocar, de permitir ser
tocada... E gostar! Eu Negra, filha da Carminha gorda, que por várias vezes
escutei dela “homem que quiser gostar de mim tem que gostar é gorda mesmo”,
encontrei eco numa experiência pop, de um corpo branco de padrões bastante
mercadológicos. Foi em “The Girlie Show” que, vi, ao vivo, vários negros e
negras compondo o grupo de bailarinos de Madonna e tomando o palco com seus
corpos e experiências negras. Mercadológicos todos, mas pretos, não todos, mas
também não era um só dançando com a loura. A vida de novo! Contraditória. Sem
receitas! E é essa contradição, essa dobra em minha experiência que me motiva
refletir a trajetória que fez de mim a pessoa que sou! Eu Negra. Negra apenas.
Nem mais negra, nem menos negra. Apenas negra. Eu Negra. Cheia de tantas outras
coisas de mim, sobre mim, comigo e em mim!
Contradição
nem sempre é bom, mas, sem dúvida, é sinal de que a vida existe. Ás vezes
espalha-me a sensação de que há um manual de ser negra. Um único modo para
todas. Comprometida. Engajada. Negra de verdade. Nesse manual há os manuscritos
da tonalidade adequada de pele, do tom exato das experiências, do texto
recomendado da inserção no mundo. Há o que pode e o que não pode. Sinto as
circunscrições, interditos e prescrições como inerentes ao modo como o próprio
racismo se arranja criando dicotomias e confusões de sentido e sentires. Uma
dessas dicotomias está assentada nos diversos pertencimentos que várias de nós
temos, porque temos possibilidades diferentes de afeto, que é dado e recebido,
temos possibilidades diferentes de localização na produção do mercado
capitalista, temos vivências diferentes ao longo de toda nossa trajetória.
Porque nossa experiência não é determinada somente pelo racismo. Embora seja
grande determinante do modo como nos constituímos, outras coisas e dimensões
constituem nossas trajetórias, e todas elas precisam ser lidas sem simplificar
nossa experiência num único dado de nossa existência. Um dado importante e
inconteste é esse: a experiência de mulheres negras norte americanas, como Bell
Hooks, não é a mesma experiência de nós mulheres negras brasileiras. A
experiência do racismo em nós mulheres negras brasileiras não é compartilhada,
sentida e vivida do mesmo modo por todas nós em diáspora . Há consciências de
lá do norte, que jamais existiram aqui. Há resistências daqui que sequer são
reconhecidas por lá.
Aqui
me lembro de uma fala de Chimamanda Adichie, onde ela discorre sobre o perigo
da história única. E cá, avalio o quanto de único há nas muitas mulheres que
hoje temos a liberdade de ser! Sim, porque é sempre bom lembrar que para que eu
esteja aqui, sentada no meu apartamento confortável escrevendo para um blog, um
tanto de outras mulheres pretas antes de mim vivenciaram experiências que nos
olhos desse tempo podem não soar tão libertadoras. Mas é isso! A história é um
caminho sem linearidade e composto de várias reentrâncias e contradições. O
miúdo dos dias pode trazer para várias de nós uma infinidade de possibilidades
de (des) afirmação que talvez nem ainda possamos alcançar tamanha a dimensão.
Cresci
junto de brancos, frequentando lugares de brancos, criando laços, desejos,
afetos por brancos. Não vivenciei nenhuma experiência de miséria ou privação, e
não vivi em um lar demarcado pela violência concreta ou simbólica. E isso não
me fez menos negra! Na minha história, nem menos negra pela constante lembrança
de Carminha e Expedito sobre o meu lugar de origem, nem pelo modo como o
próprio mundo dos brancos ia prescrevendo as limitações impostas ao meu corpo
negra. As experiências que podem não ser semelhantes à da maioria das negras,
não me livraram de ser alvo do racismo em suas inúmeras nuances e facetas. Também
fui, (e sou!!!) de modos vários, martelada em meus existires. E não é aceitável
que outras tantas como eu sejam enxergadas como menos vítimas á sanha do
racismo.
E
meus olhos de hoje olham para algumas dessas experiências com vontade de
colocar fogo em várias pessoas, mas a memória, que como diz Quintana, tem nas
mãos uma caixa de lápis de cor, me leva a olhar também os afetos daquele tempo.
Os encontros, as trocas, as risadas, as interações. Bem sei que poucas de nós
experimentaram, na infância e adolescência escolar vivenciada junto aos brancos,
trocas e afetos positivos. Mas é isso. Somos várias de variados tons coloridos
pela vida. No meu tom tem, sim, os afetos que naquele tempo eu vivia como sendo
meus, para mim, comigo. E eles são parte da mulher negra que sou, porque me
constituo também pelo modo como transitei por minhas afetividades. Eu Negra.
Transito
em minha pele sem nunca dela sair! Encontro-me sob meus poros exalando de cada
encontro os encontros outros que se fizeram em mim libertando-me da pele como
apenas um cárcere, mas território de liberdades que não foi me dada por NENHUM
branco. Mas a verdade é que nas teias dessa identidade há olhos, mãos, pés,
suores, fluidos, peles, vozes de pessoas brancas. A Madonna, as amigas, o Paulo
Freite, o Augusto Boal, as referências. O possível. Nem sempre com a chibata na
mão, nem sempre sem a chibata na mão. A branco o que é do branco, porque
existem, sim, brancos, bem poucos é certo, construindo igualdade racial e
pareados a nós, no corpo branco deles, no enfrentamento ao racismo. Nada
fazendo além do que deveria ser a obrigação de TODOS eles. Mas fazendo. Na
minha experiência de Eu Negra, Madonna é uma dessas brancas, e não a sinto como
sente a Bell Hooks porque eu e Bell Hooks não somos a mesma pessoa, e nossos
pés pisam em territórios diferentes na vivência de nossa negritude. Universais
e únicas.
Eu
Negra que me construo nesse Brasil de relações não ditas, de discriminações
silenciadas, de vivências negras fartas e repletas da crueza evidente que o
racismo constrói. Que não é velado. Não é sutil. É escancarado, covarde na
tentativa de se esconder, sórdido e
cínico no modo como se mostra, porque se apresenta no meio de bons afetos que SÃO
reais... A empregada doméstica negra que não abandona a família branca, mesmo
submetida à um sub status de humanidade. Nem sempre é só pela sobrevivência. Ela
gosta, se afeta, se envolve, se identifica, não com o algoz, mas com um sentir
que PARA ELA é real. Não é síndrome de Estocolmo. São tão somente e grandemente
as relações raciais brasileiras... O racismo que a desenha tem a mesma cara
feia e branca mundo a fora. O modo, os instrumentos de vivencia-lo são bastante
diferentes no emaranhado que, fio a fio, tece cada uma de nossas trajetórias.
Nós Negras.
Eu
Negra Diaspórica compartilhando a dor e a solidão com tantas outras negras
também. Eu Negra Diaspórica levando em minha pele de muitas a singularidade das
minhas experiências únicas, dos meu sentires possíveis, construídos,
encontrados entrelaçados, feitos, desfeitos, refeitos. Eu Negra Diaspórica. Fã
da Madonna, cepa da Maria Joana... Várias em mim, eu nelas. Eu Negra Desenhada
por tudo e todo mundo que antes de mim veio, que comigo encontra. Eu Negra.
Filha da Carminha e do Expedito. Eu...