segunda-feira, 24 de junho de 2019

Eu Negra - Parte 2






E cresci assim! Compreendendo que meu lugar no mundo não viria, jamais, sem trabalho, alegria e resistência. Fui andando por esse tal mundo com a “régua e o compasso” que me deram em casa, e deles fui traçando as descobertas variadas sobre a aventura dolorida, e também libertadora, de ser e se compreender mulher negra no Brasil... Não há distinções. Todas somos talhadas no mesmo martelo de ponta firme batendo sobre nossos existires. E assim fui aprendendo e, dia a dia construindo, refazendo-me e descobrindo-me em várias ocasiões, mulher negra. Porque essa identidade não está terminada e vai se construindo nas interações que o racismo e o antirracismo promovem. Enquanto essa faca está apontada para nosso peito é  nos desviando dela que a gente se transforma naquilo que a gente é, numa mistura com o que querem que sejamos. Não há muitas escapatórias... Se nos libertamos, até o dia de quebrar as correntes somos também aquilo que inscrevem em nossos corpos. Se não nos libertamos, nossos corpos são apenas a escrita do que dizem que somos...

E fui sendo assim, muito das tintas de Carminha e Expedito, outros tantos dos coloridos de minha família enorme, e traços variados dos discursos que a branquitude criou para as negras, e que acharam contornos próprios quando de/ao encontro de minhas vivências. Lá na escola católica de gente branca e rica em que eu estudava, as interações eram diversas. Não fui infeliz durante todo o tempo que passei por lá, de igual modo não existem só histórias boas e calorosas para serem contadas, mas não tenho memórias de assédios racistas para narrar, não porque não existiam, mas porque Carminha e Expedito estavam sempre atentos me dando a “régua e o compasso” para o enfrentamento, e demarcando seus próprios espaços de pessoas negras entregando a única filha à um cotidiano branco. “Não grite com ela, Tia Fulana, ela não está acostumada com gritos! Lá em casa ninguém grita com a Giane!” Não eram melhores, mais espertos, mais audazes, eram uma mulher e um homem negros construindo, pelos saberes de sua coletividade, as possibilidades de suas escolhas individuais. Universais e únicos. Pretos buscando e encontrando caminhos de existirem em meio aos interditos, violências e silenciamentos. Que não foram poucos. Não são poucos...

E entre a libertação e a submissão há inúmeras possibilidades. Que não são mais e nem menos, apenas possibilidades que são tantas quantas são as pessoas negras que existem em diáspora. É importante nos referenciarmos de maneira coletiva para que os enfrentamentos sejam sistematizados, principalmente em termos de garantia e promoção de direitos. Mas, não somos uma massa uniforme de experiências únicas. Bell Hooks fala da possibilidade de Madonna ser racista a partir do lugar que é o de uma mulher negra vivendo no norte do mundo, com experiências outras que nem temos conhecimento. E esse lugar não é o mesmo de Giane Elisa, que é uma mulher negra vivendo ao sul do mundo. Ela e eu temos experiências diferentes e isso não é um problema. Ao contrário! É a diversidade de nossa unicidade diante do racismo, que talvez possa nos apontar caminhos diversos no enfrentamento à ele.

Naquela sociedade é provável que Madonna seja só uma mulher branca sendo branca com suas branquices, para mim, e não falo em nome de todas as negras de minha geração (não mesmo!), Madonna é uma referência na MINHA possibilidade de afirmação enquanto mulher. Porque sim. Eu sou negra definida pelos estratagemas do racismo, mas sou também mulher definida pelas nuances do machismo. E Eu Negra sou ainda outras experiências que só se constroem na interação desses dois pertencimentos, e ainda, sou também resultado das interações que podem ser fruto apenas de minhas experiências. E importante dizer, sou fruto de minhas escolhas, porque mesmo escassas, limitadas, comprometidas e afetadas pelo racismo, sim, nós temos escolhas.

E nessas experiências guardadas na memória tem a casa da minha madrinha Maria Benedita onde a Cláudia, minha prima, tinha um disco azul da Madonna, que eu peguei emprestado e nunca mais devolvi. Fiquei fã! Fã da música, dos ritmos, das coreografias que apareciam no Fantástico, e mais tarde, nos  programas de tv do primeiro canal especializado em música do qual tive notícias... Fã. E hoje, quando olho a trajetória que me constituiu a mulher negra que sou, não passo despercebida pela Madonna, apontada pela Bell Hooks, como suspeita de ser mais uma branca racista disfarçada de lutadora das causas negras. Foi essa moça loura, que morena, apresentou em um videoclipe, no final dos anos 80, um Jesus negro, que incendiou minha vivência católica,  que na época, era praticante, militante e atuante. Não era mais um homem branquelo de olho azul, que falava das coisas que eu, cristã da Teologia da Libertação, cresci ouvindo. Era um homem preto, que parecia com meu primo/irmão Elcio, e que se libertava do sacrário para interagir sexualmente com uma mulher. Hoje sei que, como mulher branca a personagem do clipe trazia em si o racismo inerente da condição social que a branquitude constrói pra si, cultivando privilégios e acalentando uma gigantesca falta de limite e de noção quando o assunto é a compreensão de seu lugar na produção do racismo. Sendo branca, a Madonna racista é. Não tem discussão.

Hoje tenho elementos para, ao ver o clipe Like a Prayer, compreender a objetificação do homem negro. Mas, do mesmo modo, não tenho como não admitir que leio aquele tempo em minha história como um despertar de apropriação do meu próprio corpo! Corpo negro, talvez compreendido pela branquitude como território liberado... O imaginário branco de que com as pretas tudo é sexualmente permitido... Diante desse imaginário lembro de mim e Simone saindo, numa noite de sábado para encontrar com minhas amigas de escola num território de lazer esmagadoramente branco e Carminha, na porta de casa, dizendo “não vai deixar que tratem vocês como empregadinhas, não, heim?”.

Falava dela própria, das memórias de sua juventude quando ainda era ela a “empregadinha”. Sabia o que era ser “empregadinha”, o que era ter o corpo numa imagem de constante disponibilidade para o deleite de brancos... Tem isso na minha história e nas memórias atávicas que me fazem ser eu, mas não tem isso na minha experiência. Eu Negra vivi meu corpo num espaço escolar que nem corpo as mulheres podiam ter. Não se falava, não se tocava, não podia haver experimentações. E muito menos prazer! Corpo era aprendido como interdito e, talvez, nessa interdição era o único lugar onde as brancas e as raríssimas negras se encontravam...

Madonna mergulhada nos braços de um monte de homem branco em “Material Girl”, ou insinuando beijar a boca de um Jesus negro, ou ainda se esfregando numa cama com um peito de cone, foi parte do que trouxe até mim um corpo  vivido como trilhas de prazer. Não só prazer sexual, mas prazer de auto pertencimento, prazer de permissão de poder ser para além do que estava dito que podia ser, prazer de se tocar, de permitir ser tocada... E gostar! Eu Negra, filha da Carminha gorda, que por várias vezes escutei dela “homem que quiser gostar de mim tem que gostar é gorda mesmo”, encontrei eco numa experiência pop, de um corpo branco de padrões bastante mercadológicos. Foi em “The Girlie Show” que, vi, ao vivo, vários negros e negras compondo o grupo de bailarinos de Madonna e tomando o palco com seus corpos e experiências negras. Mercadológicos todos, mas pretos, não todos, mas também não era um só dançando com a loura. A vida de novo! Contraditória. Sem receitas! E é essa contradição, essa dobra em minha experiência que me motiva refletir a trajetória que fez de mim a pessoa que sou! Eu Negra. Negra apenas. Nem mais negra, nem menos negra. Apenas negra. Eu Negra. Cheia de tantas outras coisas de mim, sobre mim, comigo e em mim!

Contradição nem sempre é bom, mas, sem dúvida, é sinal de que a vida existe. Ás vezes espalha-me a sensação de que há um manual de ser negra. Um único modo para todas. Comprometida. Engajada. Negra de verdade. Nesse manual há os manuscritos da tonalidade adequada de pele, do tom exato das experiências, do texto recomendado da inserção no mundo. Há o que pode e o que não pode. Sinto as circunscrições, interditos e prescrições como inerentes ao modo como o próprio racismo se arranja criando dicotomias e confusões de sentido e sentires. Uma dessas dicotomias está assentada nos diversos pertencimentos que várias de nós temos, porque temos possibilidades diferentes de afeto, que é dado e recebido, temos possibilidades diferentes de localização na produção do mercado capitalista, temos vivências diferentes ao longo de toda nossa trajetória. Porque nossa experiência não é determinada somente pelo racismo. Embora seja grande determinante do modo como nos constituímos, outras coisas e dimensões constituem nossas trajetórias, e todas elas precisam ser lidas sem simplificar nossa experiência num único dado de nossa existência. Um dado importante e inconteste é esse: a experiência de mulheres negras norte americanas, como Bell Hooks, não é a mesma experiência de nós mulheres negras brasileiras. A experiência do racismo em nós mulheres negras brasileiras não é compartilhada, sentida e vivida do mesmo modo por todas nós em diáspora . Há consciências de lá do norte, que jamais existiram aqui. Há resistências daqui que sequer são reconhecidas por lá.

Aqui me lembro de uma fala de Chimamanda Adichie, onde ela discorre sobre o perigo da história única. E cá, avalio o quanto de único há nas muitas mulheres que hoje temos a liberdade de ser! Sim, porque é sempre bom lembrar que para que eu esteja aqui, sentada no meu apartamento confortável escrevendo para um blog, um tanto de outras mulheres pretas antes de mim vivenciaram experiências que nos olhos desse tempo podem não soar tão libertadoras. Mas é isso! A história é um caminho sem linearidade e composto de várias reentrâncias e contradições. O miúdo dos dias pode trazer para várias de nós uma infinidade de possibilidades de (des) afirmação que talvez nem ainda possamos alcançar tamanha a dimensão.

Cresci junto de brancos, frequentando lugares de brancos, criando laços, desejos, afetos por brancos. Não vivenciei nenhuma experiência de miséria ou privação, e não vivi em um lar demarcado pela violência concreta ou simbólica. E isso não me fez menos negra! Na minha história, nem menos negra pela constante lembrança de Carminha e Expedito sobre o meu lugar de origem, nem pelo modo como o próprio mundo dos brancos ia prescrevendo as limitações impostas ao meu corpo negra. As experiências que podem não ser semelhantes à da maioria das negras, não me livraram de ser alvo do racismo em suas inúmeras nuances e facetas. Também fui, (e sou!!!) de modos vários, martelada em meus existires. E não é aceitável que outras tantas como eu sejam enxergadas como menos vítimas á sanha do racismo.

         E meus olhos de hoje olham para algumas dessas experiências com vontade de colocar fogo em várias pessoas, mas a memória, que como diz Quintana, tem nas mãos uma caixa de lápis de cor, me leva a olhar também os afetos daquele tempo. Os encontros, as trocas, as risadas, as interações. Bem sei que poucas de nós experimentaram, na infância e adolescência escolar vivenciada junto aos brancos, trocas e afetos positivos. Mas é isso. Somos várias de variados tons coloridos pela vida. No meu tom tem, sim, os afetos que naquele tempo eu vivia como sendo meus, para mim, comigo. E eles são parte da mulher negra que sou, porque me constituo também pelo modo como transitei por minhas afetividades. Eu Negra.

Transito em minha pele sem nunca dela sair! Encontro-me sob meus poros exalando de cada encontro os encontros outros que se fizeram em mim libertando-me da pele como apenas um cárcere, mas território de liberdades que não foi me dada por NENHUM branco. Mas a verdade é que nas teias dessa identidade há olhos, mãos, pés, suores, fluidos, peles, vozes de pessoas brancas. A Madonna, as amigas, o Paulo Freite, o Augusto Boal, as referências. O possível. Nem sempre com a chibata na mão, nem sempre sem a chibata na mão. A branco o que é do branco, porque existem, sim, brancos, bem poucos é certo, construindo igualdade racial e pareados a nós, no corpo branco deles, no enfrentamento ao racismo. Nada fazendo além do que deveria ser a obrigação de TODOS eles. Mas fazendo. Na minha experiência de Eu Negra, Madonna é uma dessas brancas, e não a sinto como sente a Bell Hooks porque eu e Bell Hooks não somos a mesma pessoa, e nossos pés pisam em territórios diferentes na vivência de nossa negritude. Universais e únicas.

Eu Negra que me construo nesse Brasil de relações não ditas, de discriminações silenciadas, de vivências negras fartas e repletas da crueza evidente que o racismo constrói. Que não é velado. Não é sutil. É escancarado, covarde na tentativa de se esconder,  sórdido e cínico no modo como se mostra, porque se apresenta no meio de bons afetos que SÃO reais... A empregada doméstica negra que não abandona a família branca, mesmo submetida à um sub status de humanidade. Nem sempre é só pela sobrevivência. Ela gosta, se afeta, se envolve, se identifica, não com o algoz, mas com um sentir que PARA ELA é real. Não é síndrome de Estocolmo. São tão somente e grandemente as relações raciais brasileiras... O racismo que a desenha tem a mesma cara feia e branca mundo a fora. O modo, os instrumentos de vivencia-lo são bastante diferentes no emaranhado que, fio a fio, tece cada uma de nossas trajetórias. Nós Negras.

Eu Negra Diaspórica compartilhando a dor e a solidão com tantas outras negras também. Eu Negra Diaspórica levando em minha pele de muitas a singularidade das minhas experiências únicas, dos meu sentires possíveis, construídos, encontrados entrelaçados, feitos, desfeitos, refeitos. Eu Negra Diaspórica. Fã da Madonna, cepa da Maria Joana... Várias em mim, eu nelas. Eu Negra Desenhada por tudo e todo mundo que antes de mim veio, que comigo encontra. Eu Negra. Filha da Carminha e do Expedito. Eu...


domingo, 16 de junho de 2019

Eu Negra - Parte 1




Essa semana Madonna lançou seu 14° álbum! Eu, fã desde os 13, 14 anos de idade, ouço cada faixa e me encanto com a versatilidade e originalidade dessa mulher! Não só como artista, mas também como cidadã do mundo. Aí, na empolgação de compartilhar com algumas pessoas, também fãs da “blond ambition”, me deparei com o texto de Bell Hooks, famosa intelectual feminista negra norte americana discorrendo sobre os vários comportamentos racistas de Madonna ao longo de sua carreira. Segundo Bell, carreira marcada, dentre outras coisas, pela apropriação da cultura negra travestida de  suposto comprometimento com as “causas” negras... Uma irritação inicial, e logo em seguida a avaliação de que várias críticas da intelectual têm, sim, fundamento, o que para mim nem se configura como um grande choque ou surpresa. Madonna é uma mulher branca. Ponto. Pessoas brancas, em virtude da construção social de nossas sociedades, são, a priori, racistas. Assim como a sociedade que me construiu mulher cisgênero heterossexual me faz, a priori, LGBTTQI+fóbica. É assim que é.

Mas não é o racismo de Madonna ou a discussão se ela é ou não uma branca boazinha que me traz aqui. Quero falar de mim. Eu Negra. Eu que vivo sob uma pele preta, experimentando as nuances e dobras que o racismo oferece. Eu Negra. Mulher. Eu que vivo num corpo marcado pelas imposições do machismo, do sexismo e de todas as regulações que eles constroem para a experiência de TODAS as mulheres. Eu Mulher Negra. Eu que carrego em minha trajetória os traços de como a intercessão desses pertencimentos se transforma em experiências de construção identitárias invariavelmente identificadas com a dor e a solidão.

E eu Mulher Negra quero falar disso. De trajetória. Da única trajetória que conheço e sinto por inteiro. A minha. Os meus passos nesse mundo desenhando a Mulher Negra que sou hoje, os passos que encontrando com outros tantos me desenham em inúmeras possibilidades que fazem de mim ser quem eu sou. Com dores e alegrias. Com interditos e possibilidades. Eu. Negra. Mulher.

E, foi a partir das considerações que li sobre Madonna, que outras considerações foram sendo tecidas de mim sobre mim. E já aqui a estranheza pode ser localizada, na medida em que é a crítica à um corpo branco que me move na tentativa de refletir minha trajetória negra... A vida. Cheia de reentrâncias e contradições.

Sou filha da Carminha e do Expedito. Isso, para quem os conhece explica boa parte dessa conversa e, para quem não os conhece apresento aqui alguns pontos que julgo definidores de variadas questões sobre minha identidade. Identidade que é só minha, mas que se atravessa na construção de outras tantas vivências de mulheres negras diáspora brasileira á fora.

Carminha era a caçula de sete filhos, nasceu sem pai, com uma mãe, Maria Joana, que pouco tempo depois de viúva se enamorou, e grávida, decidiu deixar a pequena cidade onde viviam, fugindo de maledicências e falatórios. Carminha foi criada entre trouxas de roupas e restos de feira e, dali, foi se transformando numa jovem sonhadora e aguerrida. Sem romantismos de minha parte... Carminha foi militante na igreja católica e, como empregada doméstica, estava junto das primeiras organizações dessas trabalhadoras. Correu da polícia, empunhou bandeiras e, nos meus guardados, há muitos registros fotográficos de passeios, piqueniques, bailinhos e até de show de calouros. Carminha era fã de Emilinha Borba e, em todas as oportunidades ia para o Rio de Janeiro acompanhar a cantora na Rádio Nacional. Estudou até onde pôde e concluiu, já adulta, o segundo grau. Nas palavras de minha avó, Carminha era a que “ninguém podia  com ela.” Um dia ela conheceu o Expedito.

Já Expedito não era das badalações. Nasceu na roça, ficou órfão muito cedo. Primeiro do pai e, logo em seguida, de uma mãe, que até hoje não se sabe ao certo como morreu... Há quem diga que tomou remédio errado, o curioso é que era mateira, sabia das coisas... Era também, segundo contam, uma mulher muito bonita, formosa e empregada numa fazenda no interior de Minas, lá de um tempo, não muito longe, onde os fazendeiros ainda se comportavam como “donos” de seus empregados. Sei lá se isso, mudou... O fato é que Francisca morreu, sem muitas explicações, pouco depois de seu marido Augusto, e deixou pra trás sete filhos, dentre eles, o Expedito, que aos três anos de idade, ao contrário de meus tios e tias mais velhos, teve a sorte de ser mandado para a família de uma tia. A avó paterna que conheci, Sebastiana!!! Uma preta, muito preta, que amava o Expedito um tanto que nem sei, e eu bem desconfio que esse amor tinha muita relação com o fato de Expedito ter a pele mais clara em relação aos irmãos, e o cabelo menos crespo se comparado ao restante da família... Também eu, era a neta mais amada... Expedito foi criado por um pai que, segundo ele, “adorava bater mas era amoroso”, Expedito viveu uma infância pobre e acolhedora. Já adolescente foi jogar futebol no time lá da roça e, por causa das cores da camisa se tornou torcedor do Botafogo. Não pôde estudar para além do curso primário que a escola da roça oferecia, e veio cedo trabalhar em Juiz de Fora num armazém, fazendo entregas. Bem jovem conheceu a Carminha.

Formaram um casal e juntos construíram uma vida. O Expedito quase dez anos mais novo que a Carminha, e muito cobiçado por várias jovens, inclusive as da família para a qual pretendia entrar. A Carminha bastante fora dos padrões da moça casadoira. Se sustentava sozinha, era gorda, gostava de estudar, vivia metida com política, namorava bastante e, na falta de calçados femininos que coubessem em seu pé gordo, usava os masculinos mesmo que, quase sempre, “herdava” de seu patrão.

Expedito assumiu as bandeiras, a família extensa, as muitas amigas. Os dois fizeram de mim uma menina negra consciente de minha negritude: “podem te chamar de neguinha, de pretinha, só não podem te chamar de macaca.” Proporcionaram à mim um lar repleto de diálogo, possibilidade de escolhas e liberdades que poucas meninas à minha volta puderam experimentar, sem ter junto conflitos e confusões... Carregavam-me para tudo que é tipo de movimentação política em que estiveram envolvidos. Das belas imagens que minha memória guarda tem eu, nas costas de meu pai, assistindo, em minha cidade, o comício das Diretas Já! Ou eu, junto com minha melhor amiga branca, a Sandra, sendo levadas pelo Expedito para o comício de Lula, na primeira eleição direta pós ditadura militar. Me ensinaram disciplina, responsabilidade e amor... Amor pelas gentes, pelos animais, pelos livros, pela música. Pela vida! Carminha adorava viver! Decidiram como principal investimento a minha educação, proporcionando uma das melhores escolas da cidade e várias outras possibilidades de construção humana e estética: música, teatro, esportes, dança... Acompanharam tudo de perto, por várias vezes denunciaram o racismo na instituição em que eu estudava, e em espaços em que eu frequentava, para que eu fosse protegida. E sempre, sempre incentivaram-me a enfrentar a discriminação racial, mesmo quando nem davam esse nome para as vivências que compunham a vida das pessoas pretas. Jamais, por minhas possibilidades diferenciadas de uma criança e adolescente de classe média, me afastaram do convívio de minha família pobre, preta, significativamente periférica: “você tem que ir nos lugares onde suas primas vão.”

         Eram parceiros, presentes, comprometidos e eu, NUNCA ouvi de um com outro um grito que fosse. Discussões e desentendimentos existiam, mas nunca, na minha presença, descambaram para humilhações e desmerecimentos. Cuidaram-se! Compartilharam-se! Viveram juntos por 32 anos e, até o último momento, foi ele quem cuidou dela, foi ele quem esteve do lado acompanhando os últimos anos de vida... E, nas últimas horas, quando a respiração já ia embora, nos momentos em que Expedito se aproximava de Carminha, no leito da UTI, o monitor cardíaco apitava numa contagem disparada... Amor até literalmente o fim. Estive lá, com eles, durante toda minha vida com ela, e no momento da despedida... Esse, triste... Porém, repleto de ternura, cuidado, sensibilidade e força.

Foi essa família que me trouxe ao mundo. Foram essas pessoas que costuraram os primeiros e mais importantes fios tecendo a mulher que sou. Eu Negra Mulher diaspórica sou fruto dessa história (bem resumida) e carregada de significados. Vim de uma mulher que não aceitou sobre si muitas imposições, que transgrediu no corpo, no cabelo, no figurino e nas atitudes diante da vida. Ela veio de mulheres que de algum modo a fizeram assim. Vim de um homem negro doce, sensível, comprometido e amoroso. Essas pessoas estão em mim.

Defeitos vários os dois tinham, e eles também me escrevem, porém, a escrita da vida que meu corpo carrega é essa, de ternura, força, coragem, amizade, diálogo, entrega e amor! Um imenso e indescritível amor que sinto exalar por minha pele preta em diáspora. Aqui, começo a tracejar os caminhos que me trazem nesse percurso reflexivo sobre minha memória. Minha apenas. Não única! Minha. Potente e não livre das artimanhas, corruptelas e estratagemas do racismo. Racismo brasileiro. Único no mundo e universal para todo mundo que é preta.

Vem junto! Daqui a pouco, na próxima postagem, te conto mais e tu vai saber o que o álbum novo da Madonna tem a ver com isso... Inté!


sábado, 8 de junho de 2019

Nós somos aquelas



Nós somos aquelas

Nós somos aquelas para quem não é permitido o direito! Nós somos aquelas cujos corpos são pertencidos, discursados, expostos, apropriados. Nós somos aquelas que não dispõem da defesa, da dúvida, do contraditório. Nós somos as responsabilizadas.

Não importa a constituição de nossos corpos, nós somos aquelas que em qualquer condição ou contexto seremos responsáveis pela opressão que experimentamos. Podemos ser novas, velhas, magras, gordas, pretas, brancas, ricas, pobres. Nós somos. As opressões se entrecruzam em nossos corpos e agem em diferentes intensidades. Ás vezes mais cruéis. Os corpos das pretas, das indígenas são os mais violentados, e não há dúvidas nisso... Os nossos corpos todos, porém, jamais escapam das diversas modalidades de violência. Nós somos aquelas em quem se naturalizou a opressão como parte da identidade.

Nós somos aquelas  cuja violência a nós imposta levanta debates capazes de revelar a ausência de sensibilidades comprometidas com nosso direito à vida. Vida plena e abundante. Não há compromisso com nossos direitos, com as histórias de violências impressas sobre nossos corpos. Diante de um violentador rico e poderoso jogam sobre nós uma infinidade de atributos, e não é apenas pelo desejo de proteção daqueles que nos agridem, mas por uma espécie de raiva, de ódio que nutrem sobre nós. Nós somos aquelas a quem se odeia de todas as formas, nós somos aquelas que carregamos esses discursos sob nossos corpos, e em nossas vidas. Os discursos de ódio, os desejos de enquadramento, as tentativas de desmerecimento.

Nós somos aquelas violentadas pelo homem rico e famoso, aquelas certamente ameaçadas por seu familiar,  somos aquelas expostas na redes sociais para que se construa sobre nossos atos um juízo depreciativo de nossa valoração moral... Somos aquelas que não podem gerir seu desejo, aquela a quem não é permitido os jogos e combinados sexuais, sem que mais tarde se tornem públicos na tentativa de desmerecer e justificar a violência contra nós cometida.

Nós somos aquelas diante da mídia dizendo de nós sobre nosso pouco caráter, sobre nossa natureza manipulativa, sobre as armações que inventamos para golpear um homem indefeso. Somos nós aquelas que não têm direito a se protegerem. Nós, aquelas a quem jamais é dado o direito de desejar. A gente quer sexo! A gente quer diversão! A gente quer usar para o prazer o corpo do outro, estando o outro consentindo com isso. Não! Nós somos aquelas que se ousarmos a usar nossos corpos em nome do nosso prazer, somos ainda mais rotuladas, julgadas e desmerecidas.

Nós somos aquelas sobre quem se dirigem os discursos e análises que são capazes de deslocar o verdadeiro sentido que o machismo tem, quando joga sobre nossos corpos as responsabilidades de uma atitude eivada de simbolismos e concretudes, que escancaram a crença de que nós valemos menos, de que nós não devemos mesmo ter direitos mínimos iguais aos homens. Nós somos as que valem menos, as que sangram, as que parem, as que devem ter sempre o mesmo corpo das outras, as mesmas respostas que decidem para nós, as mesmas roupas que forqm escolhidas para nós, as mesmas atitudes aceitáveis à nós... Nós somos aquelas que devemos ser simples, desprovidas de desejo, subservientes, enquadradas, silenciosas, prestativas, doces. Infelizes.

Nós somos aquelas que, dente milhares de outras coisas, podemos também ser dissimuladas, manipuladoras, sem vergonhas, interesseiras... Nós somos aquelas que somos várias, e sendo várias, várias de nós existem sem que todas nós sejamos uma coisa só. Nós tempos a possibilidade de ser gente que não presta e gente que presta, gente má e gente boa, porque pode até não parecer, mas nós somos aquelas que somos gente.

Nós somos aquelas a quem é ensinado odiarmos umas as outras, acreditando que juntas não podemos ser, porque não nos aceitamos umas às outras... Ensinam, e nós somos aquelas que aprendemos a dizer que a outra não tem valor, que a outra vai roubar “seu” homem, que a outra se veste para te fazer inveja... Somos aquelas que aprendemos a linguagem do machismo e a reproduzimos enchendo de munição as armas que estão apontadas contra nós.

Nós somos aquelas cujos afetos podem ser sinal de perigo, somos aquelas cujos laços podem ser nós cegos... Não há garantias. Não há pai, não há irmão, não há tio, não há avô, não há amigo, não há vizinho. Todos podem ser uma ameaça. Não há tranquilidade. Todas as ruas são escuras, desertas e perigosas, todo o transporte urbano pode tomar rumo ignorado.

Nós somos as putas, as baratas, as golpistas, as dissimuladas, as vagabundas, as mentirosas, as safadas, as pilantras, as desonestas, as culpadas. Sempre as culpadas. Não importa onde uma de nós esteja, todas nós estamos no mesmo lugar que ela. Nós somos ela, e somos as outras todas. Do mesmo modo... E se vivendo nas diferentes peles, pretas e indígenas somos ainda menos... Se nos diferentes lugares da rua, da prostituição, do vício, ainda menos somos... Nada. Ninguém somos se pretas, se indígenas, se pobres.

Nós somos aquelas que experimentando a violência que é de todas experimentam sozinhas o vazio da solidão... Não era pra ser assim... Solitárias... Profundamente solitárias...


Nós somos aquelas que apanham, que são cuspidas, que são metidas contra a vontade, que são estupradas, desmentidas, ridicularizadas. Nós somos aquelas que são esfarrapadas, que são tombadas, que são difamadas, que são mortas... Nós somos aquelas...

Aquelas somos nós.
Aquela lá, é você.
E você é todas nós.

sábado, 1 de junho de 2019

O menino....


Para o Cebola...


O microfone está mudo...
A manhã ensolarada é cinza.
Tem lágrima no Bom dia...
O menino se foi.

O microfone está mudo...
A estação é despedida
O "dial" não sintoniza ...
O menino partiu.

O microfone está mudo...
Chiado...
Chiam sonhos interrompidos...
Interferem lembranças do lindo sorriso.
O menino deu adeus.


De todo dia!
"Boooom diiiiaaaaaaa"
De todo dia!
Café
Notícia
Garoto sorriso
O menino encantou.

O microfone está mudo...
Sons longe do estúdio
Notas de outros caminhos

Caminhos outros
Que musicalizam a dor
A saudade
A saudade...

O microfone!
A voz
O menino
O microfone!
O samba
A festa

Vai menino..
Vai na sempre acolhida
Vai no sempre abraço.
Vai... sorrindo!

Menino...
O microfone para sempre é seu...
No ar!